domingo, 6 de novembro de 2011

O charuto de Churchill

“O senhor não gosta dos meus charutos. Deixarei de fumá-los”. A promessa foi feita em carta de Winston Churchill ao pai, em 1893, quando tinha 18 anos de idade. Algumas décadas depois, ele se transformaria num dos grandes líderes políticos do século 20. E também num dos maiores símbolos para os amantes de charutos em todos os tempos.

Essa e outras histórias estão em “O charuto de Churchill”, de Stephen McGinty. Leitura leve, que revela detalhes da relação de amor entre o ex-primeiro ministro britânico e o tabaco.

Churchill fumava vários havanas por dia. Era abastecido principalmente por um amigo cubano, que despachava para a Inglaterra lotes da mais fina produção da ilha. Quando veio a revolução de 1959, o amigo, rico empresário, teve suas propriedades confiscadas e fugiu para os EUA. Fidel ainda tentou presentear o premier com alguns charutos, mas os assessores de Churchill recomendaram que ele os devolvesse, pois Castro era um “comunista sanguinário”.

Antes disso, durante a Segunda Guerra, os charutos de Churchill viraram questão de segurança nacional. Ao chegarem a Londres eram cuidadosamente analisados por uma equipe de cientistas, em busca de possíveis substâncias letais.

Mas Churchill não era exatamente um homem cauteloso. Numa madrugada, em reunião na qual se decidia o apoio à União Soviética contra Hitler, Churchill foi ao seu gabinete e voltou com vários exemplares ainda não examinados: “Cavalheiros, farei uma experiência que pode resultar em alegria ou pesar. Mas fumemos esses maravilhosos charutos”.

Ao longo da vida Winston Churchill foi aclamado em várias partes do mundo, recebido em banquetes por reis e rainhas, e não se constrangia em acender seus cigarrões na presença deles.

No aniversário de 90 anos, deu sua última baforada. Estava sentado em uma poltrona, a família em volta, quando repousou o charuto no cinzeiro e desfaleceu. Morreu alguns dias depois.

Deixou uma marca incontestável na História. É considerado o maior primeiro ministro inglês de todos os tempos. Ajudou a Europa e o mundo a vencer o nazismo. Angariou prestígio e respeito por onde passou. Só não conseguiu cumprir a promessa feita ao pai na juventude.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

O traidor

José Anselmo dos Santos foi um dos líderes do motim de marinheiros que, em março de 1964, ajudou a desencadear o golpe contra João Goulart e mergulhar o país na ditadura. Foi expulso da Marinha e preso; depois fugiu, virou militante de esquerda e participou de treinamentos de guerrilha em Cuba.

Retornou ao Brasil para atuar na luta armada. Em 1971 foi novamente preso e, como os demais “subversivos” da época, submetido a choques elétricos e pau de arara. Quando deixou os porões do Dops estava convertido ao regime. Agente duplo, “cachorro” dos militares, passou a delatar seus antigos companheiros. Nas suas próprias contas, ajudou o infame delegado Fleury a matar uns 200. Entre eles a mulher com quem vivia, Soledad, assassinada em Recife, no quarto mês de gravidez.

Quatro décadas se passaram desde então. Nesta semana, ligo a televisão e lá está Cabo Anselmo, na arena do programa Roda Viva da TV Cultura. Um senhor de barba e cabelos brancos desgrenhados, vestindo suéter de lã e tentando justificar o injustificável. Disse que considera “traição” uma palavra muito pesada para o que fez. “O que fiz foi evitar uma guerra civil. Só me arrependo de ter deixado a Marinha e partido para o lado da insubordinação, num momento em que o país crescia”.

Remorso? Nem pela morte da mulher. “Soledad era uma poetisa, criatura doce e carinhosa. Mas também era filha de dirigentes comunistas; foi ela quem escolheu levar aquele tipo de vida. Eu sabia dividir bem nossa relação marital e a militância. E me arrepender não vai trazê-la de volta”.

Cabo Anselmo é um homem acuado. Mais de 20 anos após o fim da ditadura, vive clandestinamente em algum canto escondido desse país. Não tem RG ou CPF. Anda pelas sombras, segundo ele sustentado por três “amigos”. “Já tive medo de morrer, hoje não tenho mais”.

Não foi fácil assistir à entrevista. Angustiante ver aquele idoso ser metralhado por perguntas sobre um passado do qual não pode escapar. Talvez nem com a morte, onde, quem sabe, encontrará Soledad e os demais companheiros que ajudou a matar.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Eu fui

Meses atrás, quando começaram as vendas de ingressos para o Rock in Rio 2011, escrevi aqui que não iria. As bandas convidadas não eram as minhas favoritas, não estava disposto a encarar a multidão prevista e nem tampouco gastar uma grana pra ir de Brasília até o Rio ver o evento. Fui. No sábado, 24.

Confesso que meio reticente, sem grandes expectativas. E uma vez em terras cariocas, cheguei a duvidar que tomara a decisão certa. No Galeão, os taxistas cobravam R$ 50,00 por pessoa até a zona sul. E só saíam do aeroporto com um mínimo de quatro passageiros. Optei pelo “frescão”, R$ 9,00 até Copacabana.

No hotel liguei o Multishow pra conferir a noite de abertura. Cláudia Leitte cantava algo como “a corda do caranguejo” e convidava o público a se sentir “no carnaval de Salvador”. Putz! No intervalo, várias pessoas entrevistadas reclamavam da falta de segurança no local; os registros de furtos passavam de 70 só no primeiro dia. Onde é que eu tinha amarrado minha canoa?

Na noite seguinte lá estava eu. Eram 19h30 quando cheguei à Cidade do Rock. Tentei comprar uma cerveja, mas as filas do Bob’s e dos outros pontos de venda estavam impraticáveis. Desisti. Rock in fila total.

Fui conferir o show do Milton Nascimento, que se apresentava no palco Sunset ao lado de Esperanza Spalding, segundo ele sua mais nova “parceira para o resto da vida”. Emocionante ver o Bituca cantando Maria Maria acompanhado por uma multidão de vozes e palmas.

Depois do Milton, realmente era hora de molhar a garganta. Quase meia hora de fila, chopp Heineken a R$ 6,50. No palco secundário, Milton fora substituído por Mike Patton, ex-Faith No More, que quebrava tudo com seu Mondo Cane, projeto no qual faz releituras inusitadas – e pesadas – de clássicos da música italiana. Genial!

Algumas filas depois, ouvi acordes conhecidos vindos do palco principal. O velho Capital Inicial mostrava vigor, reverenciando o rock brasiliense e liderando o mar de gente na pergunta que não quer calar: “Que país é esse?”

Já era madrugada quando o Red Hot Chili Peppers subiu. 100 mil pessoas acompanharam, eletrizadas, Otherside, Californication, By the way e outros sucessos. O show caminhava para o final quando puxei minha mulher pra irmos embora. Não agüentava mais ficar em pé e nem pegar fila. Queria entrar logo no ônibus e voltar pra Copa.

Eu fui, foi legal. Chego em Brasília e leio que já anunciaram o Rock in Rio 2013. Dessa vez, acho que não vou.

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Direitos adquiridos

Há três domingos, o ator e diretor Antônio Pedro publicou na revista O Globo a crônica "Se quiser beber, eu bebo". Uma crítica ao politicamente correto exasperado que anda à solta. Aliás, mais do que isso: um manifesto à liberdade de ir, vir e ser como quiser. Aqui, a reprodução do texto, em homenagem à rebeldia jovial do velho autor.


"Eu tinha 12 anos. Minha mãe, uma senhora de opinião, estava descontente com minhas notas no boletim. Nenhuma no vermelho, mas, na opinião dela, um rapaz inteligente como eu não podia tirar menos que oito. Se no próximo boletim viessem notas menores que oito, eu ficaria sem mesada e sem cinema. No boletim seguinte, tirei zero em tudo. Até em canto orfeônico.

Minha mãe, senhora inteligente, entendeu o recado. No fim do ano ganhei a chave de casa. Desde criança, tenho aversão a enquadramentos.
Mais tarde, nos anos 70, em analise com o Eduardo Mascarenhas, ele me confessou:

- Estou com uma puta inveja de você.
- Por quê?
- Porque ontem, para entrar no Antonio´s, tive que passar por cima de você, que dormia na porta. Se eu fizesse isso, perderia todos os meus pacientes, inclusive você, que não para de trabalhar.

Na época, eu era um diretores de teatro mais requisitados do Rio. Ganhava uma grana, e tive o prazer de derrubar com amigos todas as garrafas de champanhe penduradas no bar do Antonio´s. Ninguém, então, estava preocupado com meu comportamento, mas com minha competências no trabalho.

Tenho orgulho da minha militância boêmia e artística (vide porres e prêmios). Sou da estirpe das cigarras, e quando uma formiguinha trabalhadeira me contesta, sinto pena que ela não esteja aproveitando a vida, a única de que podemos afirmar a existência.

E, de repente, não posso mais chamar um amigo careca de Careca, um companheiro negão de Negão, nem a minha nega de Nega.

Não posso mais contar piada de judeu, nem de galego, nem de turco e, se bobear, o Ibama vai me multar se eu contar uma piada de papagaio.

Tudo virou insulto. Só que o insulto está na intenção de quem insulta. Posso insultar alguém chamando-o de Vossa Excelência. Ou está na sensibilidade do insultado: tem gordo escroto que fica brabo porque o chamaram de gordo. Ou na confusão de elogio com insulto: a moça que fica passada porque foi chamada de gostosa. Ou nas "n" possibilidades de relacionamento humano, Teve um tempo em que era proibido fazer piada de milico. Hoje há um catalogo de impossibilidades, Sem falar nos herdeiros bem-pensantes de falecidos velhos sátiros que conheci.

Enquadre-se a verve carioca! Seja Otario!
Esta paranóia americana pós 11 de Setembro quer enquadrar todo mundo para se sentir segura. O medo cria uma legislação sobre o ilegislável. Eu odeio palitos envelopados. Quero meu açucareiro de volta, meu churrasquinho de gato na esquina, minha sopa de ervilha na birosca da Mangueira. Quero ver meu filho cantando 'Atirei o pau no gato, to!'

Querem legislar sobre o meu corpo, meus sentimentos, sobre minha vida, pombas!

Se eu quiser fumar, eu fumo; Se quiser beber, eu bebo. Tenho 70 anos. Direitos adquiridos. Me recuso a viver sob a norma dos tartufos (hipócritas e falsos)!

Ao 'vem por aqui' do politicamente correto, respondo como José Régio: 'Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por ai.'"

(Antônio Pedro, revista O Globo, 11/09/2011)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Um homem chamado Maria

Fim de tarde, hora de fechamento na redação. O cronista, enlouquecido sobre a máquina de escrever, luta pra terminar a coluna do dia seguinte. Aproxima-se uma senhora humilde, que ele nunca vira: “Moço, preciso de ajuda. Sou da campanha contra o câncer”. E ele, sem tirar os olhos do teclado: “Pois eu sou a favor”.

O redator em questão é Antônio Maria - cronista, jornalista, compositor, locutor esportivo e boêmio, que Joaquim Ferreira dos Santos biografa no livro “Um homem chamado Maria”. O “menino grande” saiu de Pernambucano aos 19 anos, em 1940, e adotou os bares e boates de Copacabana como lar. Até morrer na porta de um deles, aos 43, vítima de infarto fulminante.

Morte fulminante, vida intensa. Morou em república com Chacrinha e Dorival Caymmi, dividiu cabines do Maracanã com Ary Barroso, enxugou tonéis de uísque com Vinicius de Moraes, e deixou sambas-canções imortalizados no cancioneiro popular, como “Ninguém me ama” e “Manhã de Carnaval”. E apesar de gordo, grande e desajeitado, namorou algumas das mais belas musas da época, entre elas Danuza Leão, grande amor da sua vida.

Encontrei o livro numa promoção, e confesso que relutei a botá-lo no carrinho. Não me arrependi. Nas 179 páginas, histórias deliciosas e bem-escritas pela pena afiada de Joaquim, que em várias partes preferiu abrir aspas para a mente inquieta de Maria:

“Nenhuma emoção é mais forte que a de entrar no quarto da amante que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o calor no ar do quarto. Deitar ao seu lado, se possível bêbado”;

Gente boba e vazia. Vaidosos, frívolos, ricos. Gosto, porém, de conhecê-los para ver até onde chega sua organizadíssima miséria humana”;

Não há sensação mais curiosa do que a de encontrar a ex-namorada pela primeira vez com o seu atual. Por mais que a gente lhe olhe o rosto, não lhe vê as feições”;

Tenho a impressão que ser minha mulher acaba com qualquer pessoa”;

Escrevi dez páginas de humorismo para o rádio. Com o desgosto de sempre. Não me acho engraçado”;

E uma última, profética:

Devo morrer cedo, de repente, por causa desses meus exageros”.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pai aos 88

Vejo na TV a imagem de um casal sorridente, debruçado sobre a incubadora onde seus filhos gêmeos, cada um pesando 1,5 kg, aguardam a alta da maternidade. A mãe olha para o pai, e diz que o nascimento das crianças – um menino e uma menina – é a confirmação do amor que os une. Os bebês nasceram prematuros, após duas tentativas de inseminação artificial.

Uma cena comum, não fosse pela idade dos pais, mais precisamente a dele: 88 anos. Isso mesmo, oitenta e oito anos de idade (Ela, 52)! Tubo bem, ele está vivo e tem o direito de fazer o que quiser nos anos que lhe restam. Mas trazer à luz duas crianças não é brincadeira. Principalmente porque é só agora, após o nascimento, que começa a luta para educar e acompanhar os filhos até a vida adulta.

Porque criar filhos é ficar acordado à noite, é levá-los para a escola de manhã cedo e para as festinhas dos amigos nos sábados à tarde; é brincar de carrinho, de casinha e jogar bola quando o corpo preferia uns minutos de descanso no sofá. Esforço físico e dedicação psicológica integral. E por mais saúde que o papai da TV tenha, certamente não terá pique nem anos úteis para tanto. Não se trata de ser cruel; é a lei da natureza.


Falando sério, acho que aos 88 já passou da hora de desacelerar, relaxar e tentar curtir calmamente as últimas primaveras da vida. Uma fase, digamos, mais contemplativa. Desfrutar o mundo que se construiu, conversar com netos e bisnetos, rever os amigos e parentes que ainda estão por aqui.

Pode ser que eu esteja errado e que, aos 88 (se lá chegar!), sinta uma baita vontade de ter mais filhos. Por enquanto, duvido que aconteça.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Brasília 10%

Foto: Mara Melo

Há quase 100 dias não chove em Brasília. Nenhuma gota de água. Nas últimas semanas o calor chegou a 34ºC; e a umidade do ar, a 10%. Clima de Saara na capital da República. Tá certo que a seca por aqui não é nenhuma novidade. Todo meio de ano é assim: dias quentes, noites frias e estiagem bruta. Mas que a coisa tem piorado de uns tempos pra cá, isso tem.

Em agosto, os focos de incêndio atendidos pelos bombeiros nos quatro cantos do DF chegaram a 250. A todo momento é um tal de caminhão vermelho tocando sirene pra lá e prá cá. Muita fumaça e muita poeira no ar. Os olhos ardem, o nariz sangra, a pele racha. E dá uma preguiça...vontade de ficar em casa, na sombra, sem fazer nada.

Pra quem está de passagem, fica difícil entender como é que conseguimos viver em condições assim. Mas, como tudo na vida, acabamos nos acostumando com esse ciclo. E, pensando bem, essa secura toda até faz parte da nossa memória afetiva.

É nessa época que o por-do-sol fica mais bonito - uma grande bola avermelhando o horizonte. As noites estreladas, um convite para estar ao ar livre. E tem os ipês: amarelos, roxos, cor-de-rosa, brancos. É no auge da seca que eles resolvem dar as caras, e florescem exuberantes sobre a grama cinza.

Início de setembro, em Brasília, começam as apostas sobre a chegada da chuva: “Próxima semana”, “Lá pra segunda quinzena”, "Só no fim do mês". E quando ela vem, aquele cheiro de terra molhada, o verde voltando, algazarra das cigarras. Uma sensação boa, de vitória. Como se tivéssemos sobrevivido a uma guerra. Que venham outras.

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Fila do banco

Quando a agência da Caixa abriu, às 11h daquela segunda-feira, a fila já devia estar grande. Cheguei uma hora depois, e cruzei com vários funcionários saindo para o almoço. Lá dentro, pouca gente pra atender uma multidão. Pensei em dar meia volta e desistir, mas fazia meses que adiava aquela ida ao banco. Tinha um saldo do FGTS a receber, coisa de R$ 1 mil mais ou menos.

Peguei a senha 43 do setor de fundos e benefícios federais. A última do painel era a 19. Sentei e procurei relaxar. Uma olhada no celular, uma conferida nos documentos que levara, uma folheada na velha carteira de trabalho..."Senha 22". À minha volta, homens e mulheres simples, trabalhadores calejados em busca de alguma migalha perdida na burocracia estatal. E também vários beneficiários do Bolsa Família que não conseguiram sacar o dinheiro na boca do caixa.

No balcão, apenas duas funcionárias: uma senhora atenciosa e barulhenta, que tratava todos como crianças - “Dona Maria, querida, deixa eu ver sua identidadezinha, meu bem?” – e uma jovem calada, com jeitão de estagiária. “Senha 25”.

Parecia fila de confessionário. A cada número chamado, um drama pessoal. “Seu José, o sr. não tem saldo na continha do fundo não. Será que seu empregador fez mesmo o recolhimento?” E o seu José, coitado, sem saber o que fazia ali. “Dona Aparecida, meu amor, estou vendo aqui no sistema que sua Bolsa foi suspensa”. E a velha senhora, atônita, pensando no que dizer quando chegasse em casa de mãos abanando. “Senha 34”.

Seu Sebastião, um idoso boa praça que chegou amparado em muletas, admitiu, após várias explicações, ter sido demitido por justa causa, daí a indisponibilidade de seu Fundo de Garantia. “É que na época eu gostava de um gole, moça. Faltava muito ao serviço! Depois disso nunca mais trabalhei com carteira assinada”. Outra senhora se exaltou ao não conseguir sacar a Bolsa Família do marido: “Aquele sem-vergonha foi embora e disse que eu podia ficar com o cartão!”. “Senha 42”.

Faltava só um para eu ser atendido. Uma e quinze da tarde. Levantei-me esgotado pela espera, mas comovido com tanta história difícil que ouvira. O 43 surgiu no painel e indicou o balcão da funcionária mais experiente, aquela atenciosa e barulhenta. Em vão: “Meu senhor, pode aguardar mais um pouco que a moça aqui do lado vai atendê-lo. Deu minha hora de almoço”.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

The Pelvis

Dezesseis de agosto de 1977. Eu tinha nove anos de idade, mas lembro como se fosse ontem. Família reunida para o almoço (jantar?) de uma terça-feira comum. Televisão da sala ligada, o locutor (Cid Moreira?) dá a notícia: “Morreu hoje, aos 42 anos, o cantor Elvis Presley. Foi encontrado caído no banheiro de Graceland, sua mansão em Memphis, Tenessee”.

Naquela época não havia internet, nem twitter, nem celular e nem TV a cabo. Mas a morte do "Rei do Rock" se tornou onipresente na mídia de então. Jornais, revistas, rádios, só se falava nele. E na telinha, tome reprise de O Seresteiro de Acapulco, Feitiço Havaiano, Ama-me com Ternura, Viva Las Vegas e outros “clássicos”.

Elvis virou febre, e entre uma partida de futebol e um rolé de bicicleta, gostávamos de imitá-lo com a gola levantada, voz grave e empostada, beijando uma a uma as garotas da plateia.

Fã mirim de Beatles e Raul que era, adicionei o repertório presleyano aos meus “favoritos”. Naquelas semanas, ganhei dos meus pais um compacto com It’s Now or Never de um lado e Jailhouse Rock do outro. Até hoje guardo o vinilzinho no fundo de um armário lá de casa.

Passados exatos 34 anos daquela terça-feira, da qual – tudo bem, admito - as lembranças surgem embaçadas, fica a homenagem a Elvis Aaron Presley. Que neste vídeo canta Suspicious Minds, um de seus maiores sucessos.

sábado, 30 de julho de 2011

Hora da caça

Imagens: Mara Melo

Foi Inocco quem nos explicou, durante parada que fizemos para admirar o pôr-do-sol da savana: os Big Five, grupo de animais mais “prestigiados” num safári, não têm esse nome por causa de seu tamanho, mas por reagirem ferozmente contra os caçadores. Essa tropa de elite é formada por leões, leopardos, elefantes, búfalos e rinocerontes.

Inocco conhece bem o assunto. Há anos, ele e o parceiro Freedom ganham a vida conduzindo deslumbrados visitantes pelos 13 mil hectares do Kapama Game Reserve, área limítrofe ao Parque Nacional Kruger, maior e mais antigo santuário de animais da África do Sul.

Brincalhões e irreverentes, é só subir na Land Rover para assumirem ar compenetrado. Concentração máxima em busca de rastros, rugidos, cheiros. Visão, audição, olfato, todos os sentidos alertas para encontrar os bichos que vivem livres pela reserva. E quando localizam algum espécime mais raro, frequentemente se entusiasmam mais do que os próprios turistas.

Fazem isso todos os dias e meses do ano. E aos que perguntam se, com o tempo, esse trabalho não fica monótono, a reposta vem rápida: “Você nunca sabe o que vai encontrar num safári”.

Guiados por Freedom e Inocco, presenciamos cenas que até então só conhecíamos via National Geographic, Discovery Channel e afins. Uma delas está neste vídeo, em que o leopardo, sentado a uns 20m ou 30m de nós, almoça tranquilamente o antílope que acabara de capturar.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

Prisão cinco estrelas

País desenvolvido é outra coisa. Na semana passada, um louco ultra-direitista de 32 anos aterrorizou a Noruega. Primeiro detonou um carro bomba que atingiu quatro prédios públicos em Oslo. Depois foi à ilha de Utoya e abriu fogo contra um acampamento de jovens ligados ao partido trabalhista. Saldo do duplo atentado: 76 mortos, segundo as autoridades do país.

Mas, estava dizendo, primeiro mundo é primeiro mundo. O autor confesso desses assassinatos foi identificado e preso. E como na Noruega não existe pena de morte, Anders Behring Breivik pode passar o resto de seus dias em Halden Fengsel, um dos mais modernos e “humanos” centros de detenção da Europa.

O lugar mais parece um resort de luxo. Lá, os hóspedes – detentos – dispõem de academia de ginástica, campo de futebol, biblioteca, estúdio musical e outros espaços de lazer. As celas – suítes - contam com televisores LCD e decoração exclusiva.

Halden Fengsel foi construído para abrigar presos perigosos. O sistema penitenciário norueguês aposta na reabilitação de seus "visitantes".

Mas atenção: Anders só pegará prisão perpétua SE realmente for considerado “uma ameaça à sociedade”. Foi o que antecipou o juiz Kim Heger, responsável pelo caso.

sábado, 23 de julho de 2011

Amy, 27

A primeira vez que ouvi Amy Winehouse foi na casa de um amigo, acho que há uns três ou quatro anos. Entre um copo e outro de vinho ele pôs na TV o DVD Back to Black. O impacto foi imediato. Aquele soul meio jazzístico, com pegada roqueira, voz de diva numa figura miúda, maquiagem pesada, cabelos longos displicentemente amarrados, vestido curto...“adolescente dos anos 60”, como ela própria descrevia seu estilo. “Quem é essa aí, cara?”.

Cheguei em casa e corri para a internet pra baixar suas músicas. Que logo viraram hits no meu carro e no i-pod. Parênteses: de vez em quando ouço algumas críticas por, em geral, preferir sons mais antigos aos atuais. De fato, minhas bandas prediletas são as dos 60, 70 e 80. Mas não significa que estou fechado a novidades. Amy é prova disso.

Em janeiro deste ano, estava de férias em Pernambuco quando ela tocou por lá. Não fui. Preferi ficar quieto na praia a pegar 60 km de estrada, batalhar ingressos com cambistas, voltar de madrugada e, sei lá se ia ter show mesmo. Porque Amy tinha dessas coisas. Mas o show aconteceu. Ela saiu do Rio de Janeiro de jatinho, foi direto do aeroporto pro centro de convenções de Olinda, permaneceu – relativamente sóbria - 45 minutos no palco e voou para seu refúgio carioca.

Hoje eu voltava pra casa após o almoço quando ouvi a notícia de sua morte. Encontrada no chão de um flat em Londres. Tinha 27 anos, como Janis, Morrison, Hendrix, Cobain etc. (No mardecoisa.blogspot.com Leando Wirz fala a respeito).

Tá certo, não foi exatamente uma surpresa; esse desfecho já era esperado. Mas que é uma pena é. A música perde uma de suas maiores estrelas neste século. E eu, agora, terei de me esforçar pra convencer os amigos de que não curto só sons do passado.

Neste vídeo, Amy, em plena forma, canta You Know I’m no Good.


segunda-feira, 18 de julho de 2011

Mandela's Day

Foto: Museu do Apartheid, Johannesburgo

Quando Nelson Mandela deixou a cadeia, em maio de 1990, após 27 anos recluso, foi recebido pela mulher, Winnie, em uma nova casa. Ampla, confortável e principalmente segura, a residência fora equipada com vidros blindados, câmeras e cercas elétricas. Tudo para receber o morador ilustre, que se tornara celebridade política internacional.

Adquirida com ajuda do ator Clint Eastwood, a construção contrastava com a pobreza da vizinhança. Madiba não gostou: “Passei tanto tempo preso e agora vocês querem me confinar aqui?”. Seu desejo era andar livre pelas ruas, conversar com o povo, liderar o golpe de misericórdia no regime de segregação. Em pouco tempo, divorciado, Mandela seria presidente da África do Sul.

Ainda hoje Winnie mora naquela casa, que virou atração turística para quem visita o Soweto. Aliás, o distrito negro, colado em Johannesburgo, raramente está nos roteiros das agências de viagens, que preferem levar os clientes para o circuito “safáris-praias-vinícolas” do país. Uma pena. Visitar o local é estar frente a frente com um capítulo marcante da história mundial.

Ao contrário do que muitos pensam, o Soweto não é uma favela. Trata-se de um conjunto de bairros que, juntos, abrigam 4 milhões de moradores. Sim, há barracos e há miséria, agravada pela vinda de refugiados de Moçambique, Namíbia e outros países mais pobres do continente.

Mas existem também boas casas, escolas, ruas asfaltadas, comércio variado, restaurantes de comida tradicional e outros equipamentos urbanos. E até uma TV Soweto, com conteúdo produzido pela comunidade. Melhorias conseguidas graças à consciência cidadã forjada no embate político-social.

"Perdoem, mas não esqueçam!”, foi uma determinação de Mandela que a população dali seguiu a risca. As cicatrizes são expostas com orgulho. Exemplo disso é o Hector Pieterson Memorial, erguido em homenagem ao jovem estudante assassinado pela polícia branca em 1976. A foto de seu cadáver carregado por um colega abriu os olhos da comunidade internacional para o absurdo do Apartheid, e hoje estampa a fachada do museu.

A Vilakasi Street também é parada obrigatória: trata-se da única rua do planeta que já foi endereço de dois prêmios Nobel da Paz: do próprio Nelson Mandela e do bispo Desmond Tutu.

Em toda a África do Sul, e não apenas no Soweto, a figura de Mandela é reverenciada como a do maior herói nacional. O homem que conseguiu unir negros e brancos, reinventando o país como nação democrática.

Neste 18 de julho ele completou 93 anos de idade. Aposentado da política, continua ativo no enfrentemanto à epidemia de Aids na África. Em seu aniversário, anualmente, o mundo celebra o Mandela’s Day. A ideia é que, inspiradas no seu exemplo, mais e mais pessoas façam algo em favor de uma humanidade melhor. Que tal ser Mandela por um dia?

Foto: Memorial Hector Pieterson, Soweto



Fotos: Celso Cavalcanti - Soweto

sábado, 2 de julho de 2011

África

Imagem: traveltourist.co.za

Embarco amanhã cedo para a África do Sul. Vou conhecer a terra de Mandela um ano após as vuvuzelas azucrinarem o mundial de futebol. E 17 anos depois de vencido o famigerado Apartheid.

Maior PIB do continente negro, o país desponta entre as economias emergentes do planeta, ao lado de Brasil, Índia e outras. Mas assim como nós, ainda convive com graves demandas sociais.

Problemas à parte, o país é tido como um dos berços da humanidade, e tem atrações de sobra para oferecer aos visitantes. Safáris, vinícolas, praias, montanhas, povo hospitaleiro e uma história singular.

Meu roteiro de dez dias inclui Johannesburgo, Cidade do Cabo e Parque Nacional Kruger. Destinos que devem render bons "causos" aqui pro Olho de Prosa. Até lá!

domingo, 26 de junho de 2011

Mantiqueira

Foto: Mara Melo

Minha filha só queria saber onde estavam Pedrinho, Narizinho, Emília e Cia. Meu filho não largava o jogo do i-touch. Minha mulher tinha comprado uma câmera nova e testava suas funções fotografando tudo ao redor. E eu conferia o celular a toda hora pra ver se dava sinal. Esperava um feed-back sobre um trabalho que concluíra pela manhã, ainda em Brasília.

Estávamos a caminho de Campos do Jordão. Almoçamos em um restaurante rural na beira da estrada e paramos na bucólica Monteiro Lobato pra visitar o Sítio do Pica-Pau Amarelo. Percorremos cada um dos 19 cômodos do velho e silencioso casarão. Rosa, a guia, tentava atrair nossa atenção. “Aqui era o quarto de Lobato”; “Aqui a varanda onde ele brincava com os filhos”; “Esta é a biblioteca onde ele escrevia seus contos”. Nossa cabeça ainda estava no cerrado, não na serra da Mantiqueira.

Cumprimentamos a atual proprietária, Dona Maria Luísa. Ouvimos, meio desatentos, mais e mais histórias de Rosa. Até que saímos para um passeio externo. Foi em meio aos bichos – coelhos, patos, galinhas, pavões, porcos e cavalos – e às plantas que começamos a nos desplugar. Vida e natureza à nossa volta.

Meu filho guardou seu equipamento. Minha filha se resignou: os personagens não estavam em casa. Minha mulher deixou o verde entrar solto pela lente. Eu me desliguei de vez do celular e do trabalho.

Caminhamos até o “reino das águas claras”. Criei coragem e entrei na água gelada do pequeno e cristalino ribeirão. Agora sim, as férias haviam começado.

Na trilha de volta, cruzamos com duas outras visitantes do sítio, que nos pararam pra perguntar: "Vocês viram o saci por aí?". A resposta foi positiva.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Borracha linha dura



Leio no jornal que a Câmara Municipal de São Paulo aprovou a mudança de denominação do viaduto General Milton Tavares de Souza, na Marginal Tietê. Mais uma medida para riscar do mapa placas e homenagens a expoentes da ditadura brasileira. Torturador contumaz, Tavares de Souza era chefe do Centro de Informações do Exército, e segundo o jornalista Élio Gaspari, foi o idealizador da política de “eliminação física dos oponentes armados do regime”.

Sábia decisão. Com esse currículo o general certamente não merece sombrear os milhares de veículos que transitam diariamente por uma das principais vias da terra da garoa. Aliás, batizar bens públicos com nomes de generais linhas duras foi, durante anos, hábito corriqueiro de líderes e crias da ditadura.

Aqui em Brasília o estádio de futebol construído nos anos 70 recebeu a alcunha de Presidente Médici; uma ponte sobre o Lago Paranoá foi nomeada Costa e Silva; e até o maior parque da capital nasceu como Rogério Pithon Farias, filho do então governador biônico Elmo Serejo Farias, morto num acidente automobilístico. Felizmente, hoje o estádio se chama Mané Garrincha; a ponte virou Ponte das Garças; e o parque é carinhosamente chamado de Parque da Cidade (apesar de oficialmente ser agora Sarah Kubitschek).

Claro que essas auto-homenagens militares não foram exclusividade brasiliense ou paulista. Nomes de generais sempre batizaram pontes, viadutos, avenidas, estradas e estádios país afora. E também no exterior. Na República Dominicana, por exemplo, os cidadãos tiveram de esperar a morte do ditador para trazer de volta à sua capital (a primeira do Novo Mundo) o nome de Santo Domingo, enterrando de vez o horroroso Ciudad Trujillo.

Em tempo: voz dissonante na Câmara paulista, o dublê de vereador Agnaldo Timóteo se rebelou contra a retirada da placa no viaduto da Tietê. “É uma tremenda frescura, uma falta de respeito ao general e ao regime militar”, bradou ao microfone o cantor de “Mamãe, mamãe, mamãe...”.

sexta-feira, 10 de junho de 2011

Terra de ninguém



“Ocupar para não entregar”. Era essa a palavra de ordem da ditadura quando, nos anos 1970, incentivou brasileiros de todos os cantos a deixar sua terra e tentar fortuna na Amazônia. Foi nessa época que, ainda menino, Dinho saiu do Paraná com seus pais para viver em Rondônia. Eles se fixaram na região conhecida como Ponta do Abunã, uma faixa na divisa com o Acre e o Amazonas, a menos de 10 km da fronteira com a Bolívia.

Os anos passaram. A floresta deu lugar a pastagens; pouquíssimos enriqueceram. Dinho virou chefe de família e líder de assentamento. Depois de quase 40 anos, o lugar ainda não tem luz elétrica, água encanada ou telefone. Posto médico, delegacia, banco, cartório...nem pensar. Terra de ninguém. Pra garantir o sustento, Dinho montou uma banca na feira de Vista Alegre, um distrito a 70 km de sua casa.

Na última sexta-feira de maio, ele descarregava os legumes e verduras do carro quando foi assassinado. Cinco tiros a queima roupa, na frente da mulher e dos dois filhos pequenos. O pistoleiro saiu caminhando. Dinho denunciava a atuação de madeireiros ilegais na região.

Nesta semana estive no assentamento. Uma comitiva de jornalistas e parlamentares em busca de informações sobre os conflitos na área. Quase três horas de Brasília a Porto Velho em avião da FAB e outros 50 minutos num bimotor até a Ponta do Abunã. A equação é clara: de um lado, os poderosos que enchem os bolsos explorando a natureza e a miséria alheia; do outro, os que atenderam ao chamado do governo e ocuparam um pedacinho de terra nos confins do “pulmão do mundo”.

Retornamos a Brasília no mesmo dia. A sensação era de estar vindo de outro país. Cheguei em casa, abracei meus filhos e minha mulher, e me lembrei que Dinho nunca mais vai voltar pra casa e abraçar sua família.

sábado, 4 de junho de 2011

Hard teatro rockn'roll

Nesta semana quem tocou seu terror aqui no Brasil foi Alice Cooper. Aos 63 anos ele é uma das lendas do rock mundial; e mais do que isso, um sobrevivente. Em entrevista à imprensa brasileira, admitiu que ainda está entre nós porque, ao contrário de amigos como Jim Morrison e Keith Moon, soube a hora de parar de beber e se drogar. “Eu não queria morrer aos 27 anos, queria fazer discos, por isso mudei minha vida. Agora sou cristão e estou casado há 34 anos”, declarou.

Mas se, digamos, os hábitos de consumo mudaram, sua maneira de pensar e fazer rock continua a mesma desde os anos 1970. Maquiagem pesada, fantasias, cadeiras elétricas, guilhotinas, monstros e serpentes compõem o teatro prefeito para que ele interprete clássicos como I’m eighteen, Love It to Death, Billion Dollar Babies e School’s Out. Mise-en-scène de horror e boa música.

Sobre sua inclusão no Rock and Roll Hall of Fame and Museum, em março deste ano, ele fez questão de agradecer a antigos mestres: “Foi como se formar no colégio. Todos os seus professores, McCartney, Jagger, Jeff Beck, esses caras especiais, estão lá. E eles votam em você por achá-lo especial. É uma honra”.

No vídeo abaixo, No More Mr. Nice Guy, que dá nome à turnê atual.

sexta-feira, 27 de maio de 2011

Açougue cultural

Em 1994 Luiz Amorim juntou as economias e se tornou dono do açougue no qual trabalhava desde os 12 anos. Apaixonado por literatura, instalou no fundo da loja uma estante com alguns livros que colocou à disposição para empréstimos. A ideia foi bem recebida, e com as doações dos clientes as prateleiras se multiplicaram, chegando a abrigar um acervo de dez mil títulos.

A veia empreendedora de Amorim, porém, queria mais. Quatro anos depois de comprar o açougue ele promoveu uma noite cultural dentro da casa. Convidou 30 pessoas para, entre alcatras, maminhas e filés mignons, curtirem momentos de música e poesia.

Mais um sucesso. Ontem, 13 anos após aquele encontro idílico, a comercial da 312 Norte estava lotada para a 29ª Noite Cultural T-Bone. No palco, agora montado na calçada, o "Avohai" Zé Ramalho cantou para um público de pelo menos 10 mil pessoas.

O açougue cultural se incorporou ao patrimônio afetivo de Brasília. Seus sarais já receberam, entre outros, Jorge Mautner, Alceu Valença, João Donato, Tom Zé, Erasmo Carlos e até a Orquestra de Viena. Isso sem falar dos incontáveis artistas locais.

Não sei em que medida essa mistura inusitada ajuda Luiz Amorim a vender mais carne. Mas uma coisa é certa: nascido da mente inquieta de um jovem humilde, que aprendeu a ler aos 16 anos, o local tem ajudado a desconstruir a imagem de uma capital sem gente nas ruas, sem esquinas e sem vida.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Jiló

Voltava de uma viagem longa e o avião parou pra uma escala em Belo Horizonte. Reclinei a poltrona e tentei cochilar enquanto esperava o embarque dos novos passageiros. Senti alguém cutucar o meu ombro: “Moço, eu sou naquela cadeira ali”. Era um sujeito rechonchudo e simpático, camisa xadrez e bigodinho preto. Levantei-me e ele se acomodou na janela.

Retornei ao meu exercício meditativo. Mas por pouco tempo. “Ô Zé, aqui dentro faz calor, hein!?”. Era o cara do lado falando com o amigo que ia na sua frente. Quem respondeu, também com sotaque carregado, foi o terceiro da turma: “Jiló, gira esse negocinho redondo aí de cima que refresca”. Jiló obedeceu. “Olha aí, Zé, o Tuninho tá chique, sabe até onde tem arzim no avião”. Alguns passageiros próximos acharam graça. Eu não. Queria dormir e cogitei mudar de lugar. Mas estavam todos lotados e me resignei.

Fecho os olhos novamente. Após a decolagem a comissária anuncia pelo rádio as informações do trajeto: “Nosso tempo de voo será de 50 minutos, com velocidade média de 800 km/h”. Meu colega de fila se assusta. “Nosssinhora, Zé, oitocentos paus! Ô loco!!”.

Vem o serviço de bordo. Enquanto degusta seu amendoim com Pepsi, Jiló aprecia o visual: “Ô Tuninho, olha a altura disso, rapaz! É alto pra carái mesmo!!”. Os risos em volta lhe dão corda: “Zé, vai acostumando com a vista daqui de cima, é aqui que cê vai morar quando morrer”. Até eu, apesar do sono, começava a me divertir com aquilo.

O voo segue, e entre uma tirada e outra descubro que de fato é a primeira viagem aérea de Jiló. Ele e seus amigos saíram do interior mineiro para pescar no Pará. De Brasília vão a Belém e de lá pra uma fazenda num monomotor.

Já próximos à chegada, sobrevoando o Paranoá, Jiló se espanta: “Olha o tamanho dessa lagoa, Tuninho! A gente devia era pescar por aqui mesmo!”. A essa altura ele era celebridade no avião. Eu, claro, não conseguira pregar o olho e folheava a revista de bordo.

Ajudo Jiló a colocar o cinto de segurança, e na aterrissagem é ele quem “tange” o avião com vozeirão de boiadeiro: “Ê, êê, êêê bichão.....bão demais!!!”.

Enquanto as portas são abertas, aquela correria pra pegar as bagagens de mão, ele analisa a aventura: “Ô Zé, essa foi mole. Quero ver é quando a gente tiver no aviãozinho no meio da mata; as onças tudo olhando pra cima e lambendo os beiços”.

Começa o desembarque e a fila anda. Despeço-me com um protocolar até logo, mas antes de ganhar o corredor ainda ouço Jiló sentenciar: “Tuninho, já reparou que só nós conversamos nesse avião? Ô povo educado, sô!”.

sábado, 14 de maio de 2011

Get Up Stand Up

Hailé Selassié governou a Etiópia por mais da metade do século 20. Foi o único imperador africano a manter seu país livre durante a colonização europeia no continente negro. O movimento Rastafári, nascido na Jamaica, vê nele a encarnação de Deus. Numa interpretação própria da Bíblia, o Leão Conquistador da Tribo de Judah.

Os rastas têm costumes peculiares, como alimentação natural, dreadlocks na cabeça e o uso sagrado da marijuana. E se Selassié é a divindade, Bob Marley é o profeta. Foi ele quem fez o grito desses cabeludos ser ouvido em todo o planeta. E colocou o reggae na parada pop mundial.

Marley nasceu em 1945. Aos 17, junto com o amigo Peter Tosh, fundou o The Wailers e deu os primeiros passos na carreira artística. Na década seguinte, tornou-se ídolo sem fronteiras. Suas canções missionárias, sobre amor, paz, liberdade e igualdade entre os povos, ganharam o mundo e o transformaram em mito. Is This Love, Africa Unite, Stir It up, Positive Vibration, Get Up Stand Up, só para citar algumas, até hoje embalam sonhos e protestos das novas gerações.

Nesta semana os fãs/seguidores celebraram os 30 anos da morte de Bob. Ele partiu aos 36, vítima de câncer. Mas sua música continua viva e atual. Neste vídeo, Get Up Stand Up, um de seus maiores sucessos, em show na Alemanha.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

No fundo do mar





Nos últimos dias o fundo do mar foi notícia recorrente na mídia. Não por suas belezas, tesouros ou exuberância. Mas o mar como sepultura.

Ao comemorar em rede mundial a morte de Bin Laden, a Casa Branca disse que o terrorista foi executado e lançado às águas por fuzileiros yankees. Na versão oficial dos EUA isso foi feito para evitar que um eventual túmulo do guerrilheiro se tornasse ponto de veneração para os radicais.

Em outro caso, o governo francês, antes de anunciar a localização das caixas-pretas do Air France 447 no meio do Atlântico, disse que o robô-mergulhador encarregado das buscas encontrara destroços do avião contendo corpos de passageiros.

Muitos familiares de vítimas celebraram. Finalmente poderiam enterrar seus irmãos, pais, maridos, esposas, amigos. Outros, porém, disseram-se contrários ao içamento. Para eles, seus entes já repousam em jazigo nobre. A viúva do maestro Sílvio Barbato afirmou, em entrevista, que o marido sempre desejou, “ao invés de morrer, simplesmente sumir”. De certa forma, ele conseguiu.

sábado, 30 de abril de 2011

Mil tons

Quando vamos a um show não é só pela música em si. É pelo que ela representa pra nós. Emoções e lembranças despertadas. Momentos. Pode ser rock, jazz, reggae, blues, mpb, samba, caipira, rap e por aí vai. Cada um na sua.

Ando numa fase Rockn’roll. Quer dizer, sempre andei. Mas de uns seis meses pra cá fui a um bocado de shows de artistas e bandas estrangeiros que antes nem pensava em ver ao vivo. Desde o último novembro, pela ordem: Scorpions, Simple Mind, Paul McCartney, Iron Maiden, Ozzy Osbourne, U2, Motorhead. E em setembro tem Judas Priest, Whitesnake, Eric Clapton e o ROCKN" RIO!

Falo isso pra dizer que hoje fiquei em casa vendo e ouvindo Chico, Caetano, Cartola, Gil e Milton Nascimento. Lindo demais! Bom escutar música brasileira dessa qualidade, admirada em todo o mundo. Como neste vídeo do Milton, cantando e encantando no Festival de Jazz de Montreal.


quinta-feira, 21 de abril de 2011

Brasília 51. Uma boa ideia?

Foto: Mara Melo

Vinte e um de abril, aniversário de Brasília. Há 51 anos a capital do país trocava as areias cariocas pela aridez do cerrado. Até hoje persiste a polêmica: será que foi um bom negócio?

De um lado, reclamam que foi um projeto faraônico de JK, a dívida externa cresceu, o Rio de Janeiro foi abandonado etc. De outro, que a mudança trouxe desenvolvimento para o interior, que o centro do poder merecia mesmo um lugar especial, e a construção da cidade foi uma epopeia digna das grandes civilizações.

Acho que os dois lados têm suas razões. Seja como for, Brasília agora é uma jovem senhora; virou metrópole, com todos os problemas e vantagens que isso traz. O mais bacana por aqui é morar, de fato, num caldeirão cultural, conviver com gente de todos os cantos do país. Uma mistura democrática de sotaques, costumes e ritmos. Isso não se acha em qualquer cidade. Esse é o lado bom. Os políticos? O preço a pagar.


sábado, 16 de abril de 2011

Uma tarde na cracolândia


Desci na estação da Luz às 3h da tarde. O céu estava escuro e pelo jeito a tempestade não ia demorar. Contornei o prédio, caminhei uns três quarteirões e cheguei à casa amarela onde funciona a Missão Cena. Fui recebido por João, o presidente da entidade que atende dependentes químicos na cracolândia.

Conversamos por cerca de meia hora. Ele me mostrou o que chama de “kit noia”, uma bolsinha com vários isqueiros e cachimbos artesanais feitos em madeira, metal e até caroço de azeitona. Falou sobre o trabalho da ONG, que oferece oportunidade pra quem quer deixar o crack. “Menos de 5% conseguem”, disse.

Convidou-me para um passeio pelas redondezas. “Prepare-se para o que vai ver!”, advertiu. Deixei carteira e celular no seu escritório. Seguimos a pé pelas ruas decadentes da região, outrora área nobre de São Paulo. Não demorou para cruzarmos com os primeiros “noiados”. Magérrimos, esfarrapados e olhar perdido, perambulam pelas ruas sem destino e com um único pensamento: fumar mais e mais pedras.

Ao virar a esquina em frente à Sala São Paulo, imponente sede da Orquestra Sinfônica do Estado, o cenário é de horror. Umas 300 ou 400 pessoas alucinadas se amontoam nas calçadas consumindo, traficando e desfrutando dos poucos minutos de “onda” que cada cachimbada oferece. Zumbis saídos de um filme apocalíptico.

Caminhamos entre eles. Muitos vinham em nossa direção: “Pastor, me ajuda a sair dessa!”. Sim, João é pastor evangélico, e me impressionou o respeito que ele conseguiu daquela gente. Conversei com viciados, traficantes, prostitutas e comerciantes. Vi a PM chegar num camburão e dar uma dura em alguns usuários, enquanto a horda corria para outros quarteirões. Do alto, um helicóptero da TV Record filmava tudo. Foram quase duas horas na cracolândia. Uma experiência sensorial, com imagens, sons e cheiros únicos e desagradáveis.

Despedi-me do pastor João com um abraço. Tinha pressa. Meu voo para Brasília sairia dali a duas horas, e a tempestade continuava a se formar sobre nossas cabeças.

sábado, 9 de abril de 2011

Perigosa vizinhança


O vazamento radioativo em Fukushima, Japão, reacendeu o debate sobre a segurança da energia nuclear. Os países mais ricos logo correram a dizer que as usinas atômicas não são, assim, nenhuma bomba-relógio prestes a nos mandar pro beleléu.

Aqui no Brasil o complexo de Angra I e II também voltou a ser questionado. Nesta semana visitei o lugar, para uma reportagem sobre os riscos das comunidades vizinhas em caso de incidentes. Em meio às sinuosas curvas verdes e azuis da Rio-Santos fica difícil imaginar que, logo ali na frente, a mata Atlântica foi substituída pelas duas grandes cúpulas brancas que guardam os reatores de Urânio.

Lá dentro, vigilância total. Preenchi uma detalhada ficha de acesso, recebi capacete e óculos especiais, desliguei meu celular e tive uma aula de energia atômica. Como nunca fui bom em Física, não captei boa parte do que disseram. Mas fiquei sabendo, por exemplo, que 3% da eletricidade usada no Brasil vem dali. E que a totalidade dessa produção se destina a Rio e São Paulo. Vi também as obras de Angra III, que devem ser concluídas em 2015, e conheci o plano de retirada da população em caso de vazamento.

Saí e fui conversar com as comunidades. Perguntei às pessoas simples, no meio da rua, se elas não têm medo de morar tão perto da central nuclear. Têm sim. Lembraram que a rodovia é estreita, os deslizamentos são constantes e frequentemente a pista é interditada no período chuvoso. Ficaria difícil fugir se houvesse um desastre.

Voltei à usina. Perguntei a um dos diretores o porquê da escolha de um dos lugares mais belos do Brasil, verdadeiro tesouro ambiental, para aquela empreitada. Além disso, bem no meio das maiores metrópoles do país. “Isso foi no regime militar. Os generais decidiram que iam fazer uma usina aqui e fizeram”, respondeu.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

Metal família

Nesta semana quem tocou aqui em Brasília foi o Iron Maiden. Turnê mundial The Final Frontier. Claro que fui. E levei meus dois filhos. Eu e o mais velho já tínhamos visto o Iron dois anos atrás. Para o mais novo seria a estreia em grandes concertos. No caminho ele não escondia a expectativa. Disse que um amigo da escola, também fã de rock, pedira ao pai que o levasse ao show, mas o pai negou porque “lá só vai ter marginal”. Então tá.

Chegamos meia hora antes do início. O público era variado. Cabeludos quarentões, jovens casais, tribos metaleiras, malucos beleza, famílias inteiras – pais, mães, avós e crianças. Sim, avós e crianças.

Quando Bruce Dickinson, Steve Harris e Cia. subiram ao palco foi uma explosão. Não havia mais diferenças de idade. Todos pulando, cantando e balançando a cabeça. Especialmente em clássicos como Two minutes to midnight, Fear of the dark e Run to the hills. Duas horas de adrenalina, paz e amor.

Britânicos que são, os donzelas de ferro fecharam o espetáculo pontualmente às 23h. Saímos abraçados, felizes e puxando os refrões. Minha mulher, que tinha ido ao cinema, nos esperava no carro. No caminho de casa, pit stop no McDonald’s. Programa família total. Ao contrário do que pensa aquele senhor lá do início, nem todo roqueiro tem cara de bandido.

Neste vídeo, “Run to the hills”, gravado no Rio de Janeiro.


quinta-feira, 24 de março de 2011

Troca de óleo

Parei num posto pra trocar o óleo do carro. Falei que queria colocar sintético e também substituir os filtros de óleo e de ar. O cara suspendeu o carro no elevador, pegou uma chave e começou um malabarismo pra alcançar o parafuso. “Não tem que tirar primeiro a chapa de proteção do cárter?”, perguntei. “Não”, respondeu sem mais conversa. “Das outras vezes o rapaz tirou”, repliquei.

Sentei num banco em frente pra acompanhar a operação. Tava difícil encaixar a chave, não tinha ângulo. Mas ele não deu o braço a torcer. Quer dizer, se retorceu todo mas não quis tirar a chapa. Após algumas tentativas frustradas foi buscar uma ferramenta maior. Voltou, suou mais um pouco, até que finalmente, num último golpe, o líquido começou a escorrer. Preto e vermelho; óleo e sangue. Na luta pra desenroscar o parafuso ele acertou em cheio a borda da chapa de aço. Abriu uma ferida abissal no dedo.

Disse um palavrão inaudível e saiu de cena novamente. Fiquei lá pensando na praga que é a preguiça humana. Se tivesse feito o processo direito não teria se machucado. Pensei em deixar pra lá e procurar outro posto. Mas agora meu carro estava sem óleo nenhum no motor. Esperei.

Depois de uns dez minutos o cara volta. Com um curativo na mão e um humor ainda pior do que antes.

quinta-feira, 17 de março de 2011

É o bicho


Tarde de sábado no Rio. Encontro um amigo em Laranjeiras e ele me convida pra botar o papo em dia num boteco perto de sua casa. Pedimos dois chopps e ficamos conversando na calçada, copos apoiados em barris de metal. Logo notamos um movimento constante em torno de dois senhores numa mesa ao lado. Eram bicheiros. Ou melhor, apontadores do jogo.

Tradicional e presente em quase todo o Brasil, o bicho é ilegal desde a década de 40. Nem parece. A turma fazia sua fezinha tranqüila, enquanto discutia a rodada futebolística do fim de semana.

Observando aquele movimento, lembramos que há tempos o jogo do bicho saiu das páginas da imprensa. Na década de 80 só se falava em Castor de Andrade, Anísio Abraão e outros barões que transitavam entre o submundo e a high society carioca. Hoje são os seus herdeiros que dão continuidade aos negócios. Mas é como se não existissem.

Vez ou outra, meu amigo, fumante inveterado, dava um passo para dentro do bar pra pegar mais um chopp no balcão. Numa dessas vem o dono, reclamando com aspereza: “Ô rapaz, é proibido fumar aqui dentro. Daqui a pouco vem a fiscalização e me ferra!”. Meu amigo responde na lata: “Quer dizer que jogo do bicho pode, mas entrar e sair um segundo com o cigarro na mão é proibido!?”

Silêncio total. O cara do bar ficou atônito, entre furioso e apavorado. Os dois bicheiros – apontadores - se entreolharam. Fizeram menção de se levantar pra falar alguma coisa com a gente. Decidimos pedir a conta e nos retirar. Lei é lei...

sexta-feira, 11 de março de 2011

Grunges



Anos 90. O grunge zarpa de Seatle, noroeste dos EUA, para o topo das paradas mundiais. Nirvana, Alice in Chains e Pearl Jam simbolizam essa explosão cultural. A cidade, décadas antes, trouxera à luz Jimi Hendrix, para muitos o maior entre todos os guitarristas.

Hoje, assim como Hendrix, boa parte dos ícones do movimento só pode ser ouvida no passado. Poucos se mantêm na ativa.

O Pearl Jam sim. Mais de 60 milhões de discos vendidos ao longo da carreira. E neste mês de março, em comemoração aos seus 20 anos, a banda lança edições de luxo dos álbuns “Vs.” e “Vitalogy”, originalmente de 1993 e 1994.

Certa vez o vocalista e guitarrista Eddie Vedder disse que o nome Pearl Jam seria uma homenagem à geleia alucinógena feita por sua avó, na Seatle de sua infância. Mito? Provavelmente.

Sempre bom ouvi-los. Como neste show na Argentina. “Last Kiss” é triste, mas é ótima.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Bloco na rua


Tarde de sexta-feira, uma semana para o carnaval. A redação praticamente vazia. Só um ou outro repórter fechando matéria. Chega um senhor baixinho, de pele curtida e cabelos grisalhos. Veste jeans, camiseta branca e óculos fundo de garrafa, e traz CD e release sobre o desfile do Pacotão. Está divulgando a marchinha e o itinerário do bloco mais irreverente e tradicional de Brasília.

Nosso visitante é Cicinho Filisteu, um dos fundadores e compositor de diversos “hits” da agremiação. Isso foi no ano passado, quando o tema era a crise política que derrubou o governador do DF. Vários deputados apareciam em vídeos recebendo propina, e o título da música - “O bolsetão da dona Eurides” - fazia alusão à deputada que escondera pacotes de dinheiro na bolsa. Argumentei que aquele não era exatamente o perfil de nossa programação. “Mas não tem nada de palavrão. Pode ir no dicionário”, insistiu num sorriso maroto.

Sugeri que fôssemos ao estúdio. Eu preparava um programa cultural para o cinqüentenário da cidade, e certamente ali estava uma ótima entrevista. Sempre irreverente Cicinho lembrou do nascimento do Pacotão, em plena ditadura militar. “Surgiu da reunião de jornalistas, professores e funcionários públicos. A turma da boemia, da noite, da madrugada”, explicou. “Somos um bloco essencialmente político. Nos reuníamos nos bares do Plano Piloto; os milicos colocavam informantes nas mesas pra nos observar. Mas jamais deixamos de meter o cacete neles”.

Durante a entrevista, Filisteu batucou vários “hinos” que marcaram a trajetória do bloco. Como o de 1979, que fustigava o último general-presidente e saudava a revolução islâmica: “Geisel, você nos atolou...o Figueiredo também vai atolar. Aiatolá, venha nos salvar, esse governo já ficou gagá...”. E outro, mais recente, desvendado um “mistério” do companheiro Lula: “Encontraram o dedo de Lula, que ele perdeu quando era trabalhador. Sabe aonde meu bem? No f... do servidor!”

Conversamos por quase uma hora. No final, Cicinho me convidou pra ir ao desfile, e ao se despedir voltou ao objetivo inicial da visita: “Mas será que não tem mesmo jeito de colocar a marchinha no ar?”

No outro domingo fui ao Pacotão com minha mulher e uns amigos. Ele estava lá, se esbaldando e cantando sua marchinha ao lado da orquestra.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

A fama dele de mau


Outro dia Leandro Wirz escreveu no seu Mar de Coisa sobre a angústia que é ter uma prateleira cheia de livros e não dispor de tempo para dar cabo a todos. Segundo ele é como “enxugar gelo”, pois na medida em que lemos um, outros vão chegando e se acumulam em volume cada vez maior. Confira em http://mardecoisa.blogspot.com/2011/01/longo-prazo-de-dias-curtos.html

Compartilho dessa aflição, mas não perco o hábito de entrar em livrarias para conferir as promoções. Dia desses achei uma com vários títulos a R$ 9,90. Levei cinco. Entre eles “Minha fama de mau”, biografia de Erasmo Carlos. Em casa, fui dar aquela folheada prévia antes de colocá-los no fim da fila. Mas a história do Tremendão me pegou. Textos curtos, leves e sem pretensões literárias. Memórias divertidas de um dos pais do rock’n roll nacional.

Erasmo narra a infância e adolescência simples na Tijuca, onde conviveu com Jorge Ben e Tim Maia, que lhe ensinou os primeiros acordes no violão. Lembra do início da carreira com The Snakes, com o qual acompanhou Cauby Peixoto numa das primeiras gravações de um rock no Brasil.

Recorda da primeira parceira com Roberto Carlos, Parei na Contramão, composta numa van a caminho de Copacabana. Em pouco tempo, chegariam ao auge, com a Jovem Guarda na TV Record. “O dinheiro estava entrando. Com o programa estourado em todo o Brasil, ditávamos moda entre a juventude da época. Meus discos vendiam como água e os shows lotavam”.

Um capítulo à parte é a relação com Narinha, mãe de seus filhos. Erasmo fala com saudades das aventuras ao lado da mulher. Como o acampamento hippie numa praia do Espírito Santo, início dos anos 70, em que desbundaram na companhia das futuras Frenéticas. Ou o jantar na casa de Raul Seixas, quando o Maluco Beleza o presenteou com um disco de Elvis Presley na capa do qual escreveu uma dedicatória até hoje indecifrada.

Ele é sucinto ao citar a morte de Nara, em 1995: “Até hoje falar do assunto mexe com meus sentimentos. Mesmo porque não sei lidar com a forma como ela se foi, tirando a própria vida”.

Bem menos glamourosa que a de seu parceiro Roberto, a carreira de Erasmo como cantor, não raro, incluiu shows em pequenos ginásios do interior e palcos improvisados em festivais universitários. Enfim, “Minha fama de mau” é a história de um homem comum que adorava rock e se transformou num dos mais bem-sucedidos compositores populares do país.

Acho que demorei uma semana para ler o livro, e só ao virar a última página me lembrei da fila na prateleira, que teima em não andar.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

De carona


Na adolescência, de vez em quando juntávamos dois ou três amigos pra “fugir” de Brasília de carona. Pegávamos um circular até a saída da cidade e, de lá, seguíamos pelo acostamento com o polegar estendido, ansiosos pra que uma alma caridosa nos recebesse em sua boleia. O destino? Pra onde o motorista fosse.

Foi assim que conheci Formosa, Alexânia, Cocalzinho, Pirenópolis e outras cidadezinhas de Goiás. Íamos sem dinheiro nenhum no bolso. A hospedagem seria em algum banco de praça ou porta de igreja. O que estivesse mais perto no final da madrugada.

Mas tínhamos um violão e muita disposição pra fazer amizades. Por isso não era difícil sermos acolhidos pelos boêmios locais, que nos davam bebida, comida e um lugar mais confortável onde esticar o esqueleto depois da farra. Na volta pra casa, novamente o acostamento até conseguir uma carona salvadora.

Foi com certa nostalgia que hoje, quando seguia para o trabalho, lembrei dessa época agora distante. Acabara de cruzar a Ponte JK, ar-condicionado e i-Pod no talo, quando vi três jovens turistas com suas câmeras fotográficas e mochilas. Enquanto curtiam o visual da beira-Lago, estendiam o dedão para os carros que passavam.

Veio um filme na minha cabeça. Questão de segundos. Até reduzi a velocidade, mas começava a chover, o trânsito era intenso e eu, pra variar, estava atrasado.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

2011, ano de celebrações


Meu amigo Rodrigo Resende fez um levantamento das efemérides e datas redondas que caem em 2011. O objetivo foi pautar possíveis reportagens para a emissora em que trabalhamos. Muitas delas, de fato, são de interesse jornalístico, como os dez anos do ataque ao WTC, em Nova York, e os 30 anos do atentado do Riocentro, um tiro no pé da ditadura que ajudou na redemocratização do Brasil.

Outras, com o perdão do meu atento colega, poderiam entrar para a galeria da cultura inútil É o caso do cinqüentenário da proibição das rinhas de galo e da comemoração do Dia do Leite em 24 de junho. Mas o que destaco aqui são algumas datas importantes para a arte e a cultura nacionais que aparecem na pesquisa. Como Rodrigo preferiu não publicá-las no seu blog (rodrigoresende.blogspot.com), tomo a liberdade de divulgar aqui no Olho de Prosa.

Neste ano comemora-se, por exemplo, o centenário de figuras como Nelson Cavaquinho, Mário Lago e Paulo Gracindo. E também os 90 anos de nascimento de Maria Clara Machado, Bibi Ferreira e Paulo Freire. Além disso, há exatas nove décadas Monteiro Lobato publicava seus clássicos “O Saci” e “Fábulas de Narizinho”.

Em 1931, lá se vão 80 anos, nasciam Chico Anysio e João Gilberto. E eram inaugurados o Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, e a Festa da Uva, em Caxias do Sul. Na turma dos 70 entram Roberto e Erasmo Carlos, que vieram ao mundo no mesmo ano em que o Repórter Esso ia ao ar pela primeira vez.

Há exatos 60 anos aconteceu a primeira edição da Bienal de São Paulo. Há 50, ano de criação da Orquestra Sinfônica Nacional, nascia o Paralama Herbert Vianna. Em 2011, faz 40 anos que morreu o escritor Anízio Teixeira. E 30 que morreram Mazzaropi e Glauber Rocha. Há 20 anos, quem partiu foram Gonzaguinha e Paulo Mendes Campos. E há dez, Jorge Amado e Cássia Eller foram desta para melhor.

Como viram, a lista é longa. E tinha muito mais coisa na pesquisa do meu amigo. Para que servem todas essas informações? No mínimo pra sabermos que não faltam motivos - felizes ou tristes - pra bebemorarmos em 2011.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Antes do apito final

Ontem fui ao aniversário de um amigo. 45 anos. Cheguei em sua casa e o cumprimentei: “Parabéns pelo fim do primeiro tempo!”. “Pô, não sacaneia!”, ele respondeu. Não era sacanagem. Costumo comparar nosso tempo de vida à duração de uma partida de futebol. Um ano, um minuto. Quarenta e cinco minutos cada tempo. Sem intervalo. Passou dos 90 já é prorrogação.

Depois, no meio da festa, meu amigo voltou ao assunto: “Interessante, não tinha pensado por esse lado. Quer dizer que tenho mais um tempo inteiro pela frente; dá pra fazer tudo de novo”. Outras pessoas entraram na conversa. Todos na faixa dos 40 (Tenho 42). Chegamos ao consenso óbvio de que não dá pra viver um segundo tempo idêntico ao primeiro. É preciso reinventar, criar novos projetos e pensar novos objetivos.

Se nas primeiras quatro décadas tínhamos a juventude soprando a favor, a partir de agora é a experiência que está do nosso lado. Conhecemos atalhos e aprendemos a evitar caminhos mais perigosos. Se até agora corremos contra o tempo para ter um bom emprego, comprar uma casa, construir uma família, daqui pra frente sobra mais tempo pra aproveitar os frutos de tantas batalhas.

Parece uma visão otimista demais sobre o avanço da idade? Talvez. Mas foi o melhor cenário que conseguimos desenhar em nossa roda etílico-filosófica. Seja como for, é preciso continuar jogando. Até o apito final.

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

Money For Nothing

Na semana passada as rádios canadenses foram proibidas de executar Money for Nothing, clássico de 1985 do Dire Straits. A censura veio após um ouvinte da cidade de St. John’s reclamar de suposto conteúdo homofóbico na canção.

Segundo o cidadão, a palavra “faggot”, citada várias vezes na letra, é depreciativa aos homossexuais. Numa tradução livre, “faggot” seria algo como o nosso “bicha”. Para o conselho regulador da radiodifusão no Canadá, o termo até poderia ser aceitável há 26 anos, mas se tornou inapropriado nos dias de hoje.

O tecladista da banda, Guy Fletcher, rebateu a acusação. Lembrou que a música não trata em nenhum momento sobre opções sexuais, mas que utiliza o inglês norte-americano coloquial para se referir a um operário sem nada no cérebro.

Realmente vivemos tempos de valorização da diversidade, combate a todos os tipos de preconceito e tal. Óbvio que isso é louvável. Mas, cá pra nós, esse patrulhamento exacerbado do politicamente correto já tá enchendo o saco, né?

Aqui no Brasil, outro dia, queriam proibir Monteiro Lobato nas escolas, alegando citações racistas contra Tia Nastácia.

Casos como esses me lembram aquela piada do marido que chega em casa e, encontrando a mulher com o amante na sala, resolve vender o sofá. Bom, enquanto não censuram Money for Nothing também por aqui, vale curtir o clipe que invadiu nossas salas na década de 80.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Fim do caminho

“É pau, é pedra, é o fim do caminho”. Em Águas de Março, de 1972, Tom Jobim parece profetizar o que iria acontecer em seu sítio Poço Fundo quase quatro décadas depois. Sim, a casa de campo do maestro foi uma das destruídas pela enxurrada que varreu a região serrana do Rio de Janeiro neste início de ano, causando mais de 700 mortes até agora confirmadas.

Tom era amante da natureza e dos animais, e na época em que fez a música devia vibrar ao ver a chuva tornando ainda mais verde sua propriedade. Se ainda vivo, talvez fizesse algo lamentando os deslizamentos que a cada verão vitimam tantos brasileiros. Sem que as autoridades tomem nenhuma medida efetiva para superar essa situação.

Geólogos, urbanistas, climatologistas, ambientalistas e outros "istas" são unânimes em afirmar que sairia muitíssimo mais barato para o poder público prevenir do que remediar essas tragédias. E quantas vidas seriam salvas...

Em 2010 assistimos às mesmas cenas em Angra dos Reis, Niterói e outras cidades. Os governantes de então prometeram providências para evitar que novos casos acontecessem: retirada de casas situadas em áreas de risco, reflorestamento de terrenos degradados, canalização de cursos d'água, etcetcetc. Mas aí os corpos foram enterrados, veio a estiagem, a mídia saiu de cena e tudo foi se ajeitando. Mais ainda: começou o período eleitoral e os políticos trataram de se ocupar das respectivas campanhas, cada um querendo garantir o seu.

Entramos em 2011 e chegaram as águas de verão. Soterramentos, mortes e destruição. As autoridades? Os mesmos discursos e promessas. Infelizmente essa rotina macabra deverá continuar e ser um dos hits do verão de 2012. O velho Tom deve estar chorando baixinho lá de cima: "Minha alma canta, vejo o Rio de Janeiro..."

segunda-feira, 10 de janeiro de 2011

Fora da área de serviço


Esse aí da foto sou eu. Não, não se trata de um despreocupado passeio pelas dunas. Quer dizer, era pra ser. Explico: estou em Fortaleza, uns dias de férias. A praia é ótima. Afastada da cidade, ondas fortes, águas limpas, sem ambulantes. Mas tem um problema: banhistas e pedestres têm que dividir espaço com jipes, camionetes, motos e, principalmente, quadriciclos. Passam o dia todo de um lado para o outro.

Desde que cheguei protesto contra isso. Além do óbvio risco de acidentes, acho uma agressão ambiental. O gerente do hotel disse que até já instalaram cavaletes na areia para tentar impedir esse tráfego. Mas um dia veio um juiz numa Hilux e mandou tirar, alegando que estavam cerceando seu “direito” de ir e vir. A velha prática da carteirada, comum em todo o Brasil.

Bom, depois de cinco dias de praia resolvemos ver o por do sol na foz do Rio Pacoti. Menos de 1 km do hotel. Já estava escurecendo, e quando botamos o pé na areia veio um cara de pochete na cintura oferecendo o aluguel de um quadriciclo. Cinquenta reais meia hora. “Se não pode vencê-los...”.

Dedo no acelerador. Delícia! No caminho até o rio tem uma área grande de dunas. Descemos, subimos, voamos. Em poucos minutos chegamos ao nosso destino. Visual!

Enquanto curtia os últimos raios, procurei meu celular no bolso da bermuda. Queria ver quanto tempo ainda tínhamos. Nada. Caiu na areia, no meio do sobe-desce. Sumiu.

Tentamos refazer o trajeto percorrido. Eu motorizado e minha mulher a pé. Foi quando ela tirou essa foto aí de cima. Impossível achar o caminho certo e muito menos o aparelho. Desistimos. Devolvemos o quadriciclo com certo atraso.

Decidi dar um último mergulho. Assim que entrei na água, dois caras com latinhas de cerveja na mão vêm correndo até mim. “Aurélio, sai daí! É perigoso tomar banho à noite!”, “Aurélio, vem pra cá!”. Estavam bêbados e me confundiram com alguém da turma. Mesmo assim obedeci. Já tinha acontecido imprevisto suficiente pro meu gosto. E eu ainda precisava ligar pra operadora e bloquear o aparelho.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Difícil adeus ao poder


No auge da ditadura sul-americana o general Pinochet dizia que, no Chile, nenhuma folha caía sem que ele soubesse. No Brasil redemocratizado, Ulisses Guimarães afirmava que o poder lhe trazia orgasmos. Bem antes disso, na França, Luis XIV enchia a boca para decretar “"L'État c'est moi!”.

O apego dos políticos ao poder vem de longe. E nas últimas semanas de dezembro, foi a vez do ainda presidente Lula reforçar essa tese. Talvez nunca na história desse país um chefe de governo tenha lamentado tanto, e tão publicamente, os estertores de seu mandato. Em cada discurso e aparição, lá estava ele chorando por ver a caneta lhe escorrer pelas mãos.

Numa de suas últimas entrevistas no cargo, ameaçou sair correndo com a faixa e não entregá-la à pupila Dilma Roussef. E emendou: “Quero só ver como será minha vida na segunda-feira sem o ajudante de ordens”. Essas tiradas, próprias do bem-humorado presidente, revelam a aflição com que ele deixava os holofotes do poder.

Veio a posse de Dilma, e Lula democraticamente passou a ela a faixa presidencial. Mas enquanto ela permanecia dentro do Planalto, prisioneira de um enfadonho protocolo cerimonial, o agora ex-presidente corria para os braços do povo. Suado, descabelado e com lágrimas nos olhos, consolava os eleitores que o aclamavam na Praça dos Três Poderes: “Não vou abandonar vocês, estarei sempre ao seu lado”, dizia em tom messiânico.

Não se pode condenar Lula por esse apego às glórias e aos aplausos. E nem acreditar que esse tipo de comportamento seja exclusividade dos políticos. Quantos artistas, atletas e outras celebridades caíram em depressão após saírem do foco dos refletores? O poder é efêmero, a fama também. E a nossa própria vida, bem mais importante, é igualmente finita. O problema é que sempre fazemos questão de esquecer esse detalhe.