terça-feira, 28 de dezembro de 2010

Promessas de virada


Final de ano, momento ideal para renovar esperanças e promessas. Renovar sim, porque, em geral, elas se repetem a cada mês de dezembro. Ficar mais tempo com os amigos e a família, passar num concurso público, parar de fumar, beber menos, praticar esportes. Enfim, a lista é longa e, normalmente, requentada de doze em doze meses.

Se bem que, neste 2010, posso dizer que me esforcei para cumprir pelo menos algumas dessas promessas de virada. Manter uma atividade física regular foi uma das tentativas. Em dezembro do ano passado resolvi que era hora de abandonar o sedentarismo, melhorar o condicionamento físico, ganhar fôlego de atleta. Pensei em várias opções e concluí que deveria fazer remo.

Esperei passar a época das chuvas – quase metade do ano – e me matriculei na escola de um clube às margens do Paranoá. O professor, um polonês rechonchudo e de pouca conversa, avisou que as primeiras quatro aulas seriam no “barco escola”, uma caixa de madeira acoplada ao píer.

No primeiro dia voltei para casa me sentindo uma jovem revelação dos esportes náuticos. No segundo, já contara para todo mundo que agora eu era um remador. Terceira e quarta aulas, sentia-me um ás das raias brasilienses. Certa vez questionei o professor sobre os outros alunos, pois sempre que eu ia só encontrava ele próprio e seu assistente. “É que os outros vêm às seis da manhã; você vem às dez”.

Até que chegou o dia de cortar o cordão umbilical e ganhar as águas do lago. Ajudei o polonês a carregar nos ombros o que ele chamou de barco “largo”, para iniciantes. Embarquei com certa dificuldade e tomei os remos nas mãos. “Agora é com você. Não tire os remos da água senão vai ver os peixes de perto”. Tenso e desequilibrado, fui me afastando da margem. “E olhe sempre para trás, para não bater em nada”, ainda gritou o mestre, antes de virar as costas e voltar para sua TV.

No trajeto, uma floresta de aguapés enganchava nos remos e impedia meu avanço. Quando conseguia me desvencilhar das algas, seguia trôpego entre as marolas. No meio do lago, uns 30 metros de profundidade aumentavam minha aflição. Dobra os joelhos, estica a perna, punhos retos, costas alongadas, cabeça erguida. Difícil ordenar tantas técnicas naquela situação. “Esquece, o negócio é não virar”, raciocinei.

Depois de uma meia hora, até que estava gostando daquilo, sol e vento batendo na cara, sensação de liberdade. Só esqueci de olhar para trás. A pancada foi forte, e o estrondo também. Acertei em cheio um veleiro que estava ancorado no meio do lago. Com dificuldade, evitei que meu barco virasse. Olhei para a margem distante e lá estava a figura redonda e albina do polonês desesperado, agitando os braços, aos berros: “Tá erraaadoooo! Assim nãããoooo, vira a poopaaaaa!”. Passei ainda alguns minutos remando pra frente e pra trás, sem sair do lugar, até embicar na direção do clube.

Quando alcancei terra firme, carreguei o barco até a garagem junto com o ajudante. O polonês assistia a TV. Não me deu nenhum feed-back. Aliás, acho que não sabia nem o meu nome. Comentei alguma coisa e me despedi. Nunca mais voltei.

E neste mês de dezembro, ao elaborar a lista de promessas para 2011, estou procurando alguma modalidade menos radical para finalmente virar a página do sedentarismo. Depois das chuvas, claro.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

José e Pilar


“Pilar, encontramo-nos em outro sítio”. Olhar fixo na câmera, um esboço de sorriso, José dá alguns passos, estica o braço direito e desliga o aparelho. É assim, com jeito de despedida, que começa “José e Pilar”, belo documentário de Miguel Gonçalves Mendes sobre a relação entre José Saramago e sua esposa, a jornalista espanhola Pilar Del Rio.

Um parêntese: adoro cinema, mas prefiro na forma de DVD’s em casa. E raramente escolho filmes românticos. Já minha mulher é fã da telona e de histórias de amor. E foi numa dessas concessões imprescindíveis a qualquer casal que me vi sentado no Cine Belas Artes, numa chuvosa noite paulistana.

Único escritor de língua portuguesa a ganhar um prêmio Nobel, Saramago é autor de diversos clássicos da literatura mundial. Mas não é sua produção literária, em si, a protagonista da película. O que se destaca mesmo é o amor entre aquele senhor octogenário e sua mulher, 28 anos mais nova. Pilar era uma jovem repórter quando pediu uma entrevista ao consagrado autor. No primeiro encontro, paixão instantânea. A entrevista nunca aconteceu.

De sua casa em Lanzarote, Canárias, Pilar é a ponte entre Saramago e o mundo real. É ela quem organiza a agenda do marido, um sem-fim de viagens, noites de autógrafos, congressos, entrevistas, cartas e convites a responder. Em alguns momentos o velho escritor se queixa da rotina estafante. “Não sei que diabo de interesse possam ter em declarações tantas vezes repetidas”.

Porém logo reconhece na mulher a faísca de sua chama vital: “Se eu tivesse morrido antes de conhecê-la, aos 63 anos, morreria muito mais velho do que serei quando chegar a minha hora”. Nos momentos de intimidade, o casal vê televisão, discute política, caminha pela ilha, filosofa. “Eu tenho ideias para romances; Pilar tem ideias para a vida”, define José.

O filme tem muitas passagens marcantes. O casamento em 2009, na cidade natal de Pilar, é uma delas. Outra é quando Saramago vai às lágrimas ao assistir à adaptação para o cinema de seu Ensaio sobre a Cegueira. Ou ainda quando ele se recupera de uma grave doença, conclui A Viagem do Elefante, e agradece à mulher por não tê-lo deixado morrer.

Ao final, olhar fixo na câmera, um esboço de sorriso, “Pilar, encontramo-nos em outro sítio”, José dá alguns passos, estica o braço direito e desliga o aparelho.

Eu e minha mulher – e quase todos na plateia - ficamos ainda uns instantes sentados, vendo subirem os créditos, sob o impacto daquela história real de amor. Um clima romântico e comovido no ar. Saímos abraçados do cinema, pegamos um táxi e fomos jantar.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Uma nova chance

Costumo desconfiar da capacidade de recuperação de criminosos graves. Talvez esteja errado, sendo preconceituoso. Mas com o sistema carcerário que temos no Brasil, verdadeiras “fábricas de bandidos”, como se costuma dizer, é difícil alguém entrar numa cela “mauzinho” e sair “bonzinho”. Aliás, a própria natureza humana me faz ser cético quanto a uma possível remissão de caráter. Parece filosofia barata, mas dois fatos recentes me fizeram pensar nisso.

O primeiro foi durante a ocupação do Complexo do Alemão pela polícia do Rio. Em meio às cenas de guerra na TV, uma mãe chorosa contava aos repórteres como havia conseguido a rendição de seu filho, o traficante conhecido como Mister M: “Disse pra ele: Diego vamos pra casa com a mamãe”. Diante da negativa do rapaz, dona Nilsa não cedeu: “Então você vai comigo e seu irmão, que vamos te apresentar na delegacia”.

E lá estava o ex-Mister M, olhar sereno, sorriso acanhado deixando-se exibir como um troféu diante de jornalistas e policiais. Em seu semblante, percebi certo alívio por ter saído vivo do cerco à favela. E, mais do que isso, parecia sinceramente satisfeito por ter finalmente dado uma alegria à sofrida mãe.

O segundo fato que gerou essa reflexão foi o apelo feito por um dos agressores de um grupo de rapazes na Avenida Paulista. Motivados por uma homofobia bestial, ele e seus amigos espancaram quatro garotos com quem cruzaram na calçada. O motivo? Pareciam gays. Tudo captado pelas câmeras dos prédios vizinhos e mostrado na TV.

Pois bem, todos acabaram presos. E o agressor em questão, um menor de 16 anos, disse, por meio de seu advogado, que queria “uma nova chance”. E foi mais longe: “Estou profundamente arrependido. Jamais faria isso de novo”.

Não sei se Mister M e o adolescente se arrependeram de verdade e decidiram que, quando sair às ruas, viverão de fato uma vida nova. Pode ser que sim. Mas na dúvida, é melhor por enquanto deixá-los onde estão. Assim, terão mais tempo para pensar nas besteiras que andaram fazendo.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Lennon, 70 anos

“Um simples canalha mata um rei em menos de um segundo”, protestam Beto Guedes e Ronaldo Bastos em Canção do Novo Mundo. A música remete à noite de 8 de dezembro de 1980, quando, em frente ao edifício Dakota, em Nova York, um fanático assassinou John Lennon com cinco tiros. Passados 30 anos, Mark Chapman continua na cadeia; e Lennon, eternizado por velhos e novos admiradores de todo o mundo.

Co-responsável por uma das maiores revoluções culturais da humanidade, o ex-Beatle morreu aos 40 anos, portanto teria 70 neste fim de 2010. Pacifista que era, não celebrou a queda do muro de Berlim. Tampouco viu o ataque às torres gêmeas do WTC ou as guerras do Iraque e do Afeganistão. Certamente teria levantado a voz contra as barbáries que continuaram acontecendo após aquela gelada noite nova-iorquina. “...por que você não fez a bala parar?”

Fica aqui uma homenagem a esse gênio da música internacional.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Na fronteira


“Cadê meu passaporte?” Estava de saída para o aeroporto e havia esquecido desse documento básico para viajar pro exterior. Exterior mais ou menos; na verdade iria até a fronteira do Brasil com a Bolívia fazer uma matéria sobre os bolivianos que vêm a São Paulo trabalhar em condições escravas. Achei a cadernetinha verde no fundo de uma gaveta e parti pra Corumbá.

Do alto, o Pantanal impressiona. No balcão da locadora, a moça avisou que o seguro só valia dentro do Brasil, por isso o carro não poderia cruzar a divisa. Combinei que o motorista me esperaria do lado de cá, e eu iria de táxi para Puerto Quirrajo e Puerto Suarez, cidades de onde partem os vizinhos em busca do “sonho” brasileiro.

Ramon me pegou no hotel depois do almoço. Expliquei o itinerário e contei o que havia combinado com sua empresa. Ele sorriu: “Que nada, Brasil e Bolívia, aqui, é tudo uma coisa só”. Depois de cinco minutos chegamos a uma guarita onde tremulavam as bandeiras dos dois países. Dentro dela, três ou quatro guardas sonolentos acenaram para meu novo amigo e nos deixaram passar sem perguntar pra onde nem por quê.

Do lado de lá a mesma coisa. Muita poeira, um comércio intenso de todo tipo de produtos, velhas índias vendendo folhas de coca e uma zona franca repleta de muambeiros. Parei num bar pra tomar um refri, e o dono me ofereceu um Vectra por R$ 5 mil. Vans e microônibus saíam entupidos de futuros escravizados. Para lá e para cá, tráfego constante. Veículos e pedestres passam de um país ao outro sem ser incomodados. Ramon sorriu novamente: “Não falei?”.

Também achei graça por ter, ainda em casa, me preocupado com o passaporte. Agora, nesses tempos de guerra ao tráfico ao vivo pela TV, vejo especialistas dizendo que 60% da cocaína apreendida no Brasil vem da Bolívia. O governo, por sua vez, acena com um “megaprojeto” de reforço das fronteiras. Precisava ter esperado tanto?