quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Direitos adquiridos

Há três domingos, o ator e diretor Antônio Pedro publicou na revista O Globo a crônica "Se quiser beber, eu bebo". Uma crítica ao politicamente correto exasperado que anda à solta. Aliás, mais do que isso: um manifesto à liberdade de ir, vir e ser como quiser. Aqui, a reprodução do texto, em homenagem à rebeldia jovial do velho autor.


"Eu tinha 12 anos. Minha mãe, uma senhora de opinião, estava descontente com minhas notas no boletim. Nenhuma no vermelho, mas, na opinião dela, um rapaz inteligente como eu não podia tirar menos que oito. Se no próximo boletim viessem notas menores que oito, eu ficaria sem mesada e sem cinema. No boletim seguinte, tirei zero em tudo. Até em canto orfeônico.

Minha mãe, senhora inteligente, entendeu o recado. No fim do ano ganhei a chave de casa. Desde criança, tenho aversão a enquadramentos.
Mais tarde, nos anos 70, em analise com o Eduardo Mascarenhas, ele me confessou:

- Estou com uma puta inveja de você.
- Por quê?
- Porque ontem, para entrar no Antonio´s, tive que passar por cima de você, que dormia na porta. Se eu fizesse isso, perderia todos os meus pacientes, inclusive você, que não para de trabalhar.

Na época, eu era um diretores de teatro mais requisitados do Rio. Ganhava uma grana, e tive o prazer de derrubar com amigos todas as garrafas de champanhe penduradas no bar do Antonio´s. Ninguém, então, estava preocupado com meu comportamento, mas com minha competências no trabalho.

Tenho orgulho da minha militância boêmia e artística (vide porres e prêmios). Sou da estirpe das cigarras, e quando uma formiguinha trabalhadeira me contesta, sinto pena que ela não esteja aproveitando a vida, a única de que podemos afirmar a existência.

E, de repente, não posso mais chamar um amigo careca de Careca, um companheiro negão de Negão, nem a minha nega de Nega.

Não posso mais contar piada de judeu, nem de galego, nem de turco e, se bobear, o Ibama vai me multar se eu contar uma piada de papagaio.

Tudo virou insulto. Só que o insulto está na intenção de quem insulta. Posso insultar alguém chamando-o de Vossa Excelência. Ou está na sensibilidade do insultado: tem gordo escroto que fica brabo porque o chamaram de gordo. Ou na confusão de elogio com insulto: a moça que fica passada porque foi chamada de gostosa. Ou nas "n" possibilidades de relacionamento humano, Teve um tempo em que era proibido fazer piada de milico. Hoje há um catalogo de impossibilidades, Sem falar nos herdeiros bem-pensantes de falecidos velhos sátiros que conheci.

Enquadre-se a verve carioca! Seja Otario!
Esta paranóia americana pós 11 de Setembro quer enquadrar todo mundo para se sentir segura. O medo cria uma legislação sobre o ilegislável. Eu odeio palitos envelopados. Quero meu açucareiro de volta, meu churrasquinho de gato na esquina, minha sopa de ervilha na birosca da Mangueira. Quero ver meu filho cantando 'Atirei o pau no gato, to!'

Querem legislar sobre o meu corpo, meus sentimentos, sobre minha vida, pombas!

Se eu quiser fumar, eu fumo; Se quiser beber, eu bebo. Tenho 70 anos. Direitos adquiridos. Me recuso a viver sob a norma dos tartufos (hipócritas e falsos)!

Ao 'vem por aqui' do politicamente correto, respondo como José Régio: 'Não sei por onde vou, não sei para onde vou. Sei que não vou por ai.'"

(Antônio Pedro, revista O Globo, 11/09/2011)

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Um homem chamado Maria

Fim de tarde, hora de fechamento na redação. O cronista, enlouquecido sobre a máquina de escrever, luta pra terminar a coluna do dia seguinte. Aproxima-se uma senhora humilde, que ele nunca vira: “Moço, preciso de ajuda. Sou da campanha contra o câncer”. E ele, sem tirar os olhos do teclado: “Pois eu sou a favor”.

O redator em questão é Antônio Maria - cronista, jornalista, compositor, locutor esportivo e boêmio, que Joaquim Ferreira dos Santos biografa no livro “Um homem chamado Maria”. O “menino grande” saiu de Pernambucano aos 19 anos, em 1940, e adotou os bares e boates de Copacabana como lar. Até morrer na porta de um deles, aos 43, vítima de infarto fulminante.

Morte fulminante, vida intensa. Morou em república com Chacrinha e Dorival Caymmi, dividiu cabines do Maracanã com Ary Barroso, enxugou tonéis de uísque com Vinicius de Moraes, e deixou sambas-canções imortalizados no cancioneiro popular, como “Ninguém me ama” e “Manhã de Carnaval”. E apesar de gordo, grande e desajeitado, namorou algumas das mais belas musas da época, entre elas Danuza Leão, grande amor da sua vida.

Encontrei o livro numa promoção, e confesso que relutei a botá-lo no carrinho. Não me arrependi. Nas 179 páginas, histórias deliciosas e bem-escritas pela pena afiada de Joaquim, que em várias partes preferiu abrir aspas para a mente inquieta de Maria:

“Nenhuma emoção é mais forte que a de entrar no quarto da amante que dorme. Sentir-lhe o cheiro e o calor no ar do quarto. Deitar ao seu lado, se possível bêbado”;

Gente boba e vazia. Vaidosos, frívolos, ricos. Gosto, porém, de conhecê-los para ver até onde chega sua organizadíssima miséria humana”;

Não há sensação mais curiosa do que a de encontrar a ex-namorada pela primeira vez com o seu atual. Por mais que a gente lhe olhe o rosto, não lhe vê as feições”;

Tenho a impressão que ser minha mulher acaba com qualquer pessoa”;

Escrevi dez páginas de humorismo para o rádio. Com o desgosto de sempre. Não me acho engraçado”;

E uma última, profética:

Devo morrer cedo, de repente, por causa desses meus exageros”.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Pai aos 88

Vejo na TV a imagem de um casal sorridente, debruçado sobre a incubadora onde seus filhos gêmeos, cada um pesando 1,5 kg, aguardam a alta da maternidade. A mãe olha para o pai, e diz que o nascimento das crianças – um menino e uma menina – é a confirmação do amor que os une. Os bebês nasceram prematuros, após duas tentativas de inseminação artificial.

Uma cena comum, não fosse pela idade dos pais, mais precisamente a dele: 88 anos. Isso mesmo, oitenta e oito anos de idade (Ela, 52)! Tubo bem, ele está vivo e tem o direito de fazer o que quiser nos anos que lhe restam. Mas trazer à luz duas crianças não é brincadeira. Principalmente porque é só agora, após o nascimento, que começa a luta para educar e acompanhar os filhos até a vida adulta.

Porque criar filhos é ficar acordado à noite, é levá-los para a escola de manhã cedo e para as festinhas dos amigos nos sábados à tarde; é brincar de carrinho, de casinha e jogar bola quando o corpo preferia uns minutos de descanso no sofá. Esforço físico e dedicação psicológica integral. E por mais saúde que o papai da TV tenha, certamente não terá pique nem anos úteis para tanto. Não se trata de ser cruel; é a lei da natureza.


Falando sério, acho que aos 88 já passou da hora de desacelerar, relaxar e tentar curtir calmamente as últimas primaveras da vida. Uma fase, digamos, mais contemplativa. Desfrutar o mundo que se construiu, conversar com netos e bisnetos, rever os amigos e parentes que ainda estão por aqui.

Pode ser que eu esteja errado e que, aos 88 (se lá chegar!), sinta uma baita vontade de ter mais filhos. Por enquanto, duvido que aconteça.

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Brasília 10%

Foto: Mara Melo

Há quase 100 dias não chove em Brasília. Nenhuma gota de água. Nas últimas semanas o calor chegou a 34ºC; e a umidade do ar, a 10%. Clima de Saara na capital da República. Tá certo que a seca por aqui não é nenhuma novidade. Todo meio de ano é assim: dias quentes, noites frias e estiagem bruta. Mas que a coisa tem piorado de uns tempos pra cá, isso tem.

Em agosto, os focos de incêndio atendidos pelos bombeiros nos quatro cantos do DF chegaram a 250. A todo momento é um tal de caminhão vermelho tocando sirene pra lá e prá cá. Muita fumaça e muita poeira no ar. Os olhos ardem, o nariz sangra, a pele racha. E dá uma preguiça...vontade de ficar em casa, na sombra, sem fazer nada.

Pra quem está de passagem, fica difícil entender como é que conseguimos viver em condições assim. Mas, como tudo na vida, acabamos nos acostumando com esse ciclo. E, pensando bem, essa secura toda até faz parte da nossa memória afetiva.

É nessa época que o por-do-sol fica mais bonito - uma grande bola avermelhando o horizonte. As noites estreladas, um convite para estar ao ar livre. E tem os ipês: amarelos, roxos, cor-de-rosa, brancos. É no auge da seca que eles resolvem dar as caras, e florescem exuberantes sobre a grama cinza.

Início de setembro, em Brasília, começam as apostas sobre a chegada da chuva: “Próxima semana”, “Lá pra segunda quinzena”, "Só no fim do mês". E quando ela vem, aquele cheiro de terra molhada, o verde voltando, algazarra das cigarras. Uma sensação boa, de vitória. Como se tivéssemos sobrevivido a uma guerra. Que venham outras.