terça-feira, 30 de novembro de 2010

Sem travas na língua



Dois marginais do Rock, cada um no seu quintal, lançam autobiografias: o Rolling Stone Keith Richards traz à luz “Vida”; o vida louca Lobão, “50 anos a mil”. O primeiro, ao mesmo tempo lenda e anti-herói do show bizz mundial. O segundo, ícone da cena oitentista brasileira. Ambos têm mesmo muito a contar. A história de Keith consome 640 páginas, enquanto a do nosso Lobo se estende por mais de 700.

Seria forçar demais a barra comparar as duas carreiras. O que não impede fazer um paralelo. Keith e Lobão mergulharam fundo nas drogas, e muitos achavam que eles não teriam tempo de ler suas memórias. Diz Lobão: “Era só subir no palco que já ganhava seringa, garrote, heroína, cocaína”. Keith não fica atrás: “Se contasse as vezes em que me virei e vomitei atrás dos amplificadores ninguém acreditaria”.

Também no ambiente familiar, Richards e Lobão têm afinidades. O Stone jura que cheirou as cinzas do pai, e tocou Malagueña para a mãe moribunda. Sobre a morte do segundo filho aos dois meses de idade, desabafa culpado: “Nunca cheguei realmente a conhecer o filho da puta. Talvez tenha trocado a fralda dele umas duas vezes”. O brasileiro garante que superou o suicídio da mãe e que, no velório, batucou no caixão o samba-enredo preferido dela. Sobre a filha, hoje adulta, Lobão desencana: “A relação é desprezível, não tenho o menor contato”.

Parceiros e contemporâneos musicais são tratados com acidez. Lobão acusa Herbert Viana de plagiar suas ideias: “Eu fiz Me Chama, ele fez Me Liga; eu fiz Cena de Cinema, ele fez Cinema Mudo”. E reclama que "sumiu" da biografia de Cazuza, seu “melhor amigo”. Já Keith é impiedoso com sua cara-metade musical: “Mick Jagger é traidor e artificial. A frase que ele usava e que continua ressoando nos meus ouvidos é ‘Cala a boca, Keith’. Deve fazer uns vinte anos que não vou ao camarim dele”.

Biografias à parte, o melhor é que os dois continuam na estrada.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Festa no Morumbi


Faltavam 2h30 para o show e a garoa não dava trégua. Fizemos um pit-stop numa padaria próxima à Paulista. Na entrada, encontro um velho amigo de Brasília. Estava em São Paulo a serviço. Contei que ia ver o Paul McCartney. “Não tenho mais idade nem paciência para essas multidões”, disse ele antes de nos despedirmos.

Entramos no táxi. Segunda-feira, rush e água caindo. Quase 2h de engarrafamento. O taxímetro e o relógio apostando corrida. Preocupados com a pontualidade britânica de Sir Paul, fomos deixados numa ladeira a alguns quarteirões do estádio. Na descida, cambistas e ambulantes ofereciam ingressos e capas de chuva.

Pisamos no gramado faltando dez minutos para as 21h30 e escolhemos um lugar de onde poderíamos enxergar minimamente o palco. Encarei a fila pra comprar logo seis fichas de cerveja. Cinco reais a latinha. Quando retornava, Macca dispara os primeiros acordes de Magical Mystery Tour. Difícil encontrar a turma, longe demais do palco, cabeça ainda no engarrafamento.

Mais duas ou três músicas, vou ao banheiro. Assim que entro no cubículo químico e fétido, a introdução de Got to Get You into My Life me faz cair na real. “Porra, tô num show dos Beatles!”. Pelo menos o mais perto disso que poderei chegar na vida.

Saí o mais rápido que pude. Cantando, pulando e, agora sim, com a ficha no seu devido lugar. Na sequência, um repertório com que só um bandleader Beatle poderia brindar seu público: The Long and Winding Road, Blackbird, Something, A Day In The Life, Eleanor Rigby, Paperback Writer, Hey Jude, Get Back e outros clássicos.

No telão, a expressão simpática daquele senhor tão familiar de 68 anos. No palco, uma formiguinha atômica se sacudindo e tentando falar português. Na pista, nas cadeiras e arquibancadas, um coro histérico de fãs de todas as idades. Quase três horas de emoção à flor da pele.

Terminados os últimos acordes de Yesterday, a volta à realidade. Fila quilométrica, procura insana por um táxi, etc.etc.etc. De vez em quando alguém puxava um refrão e era prontamente respondido. Naquela chuvosa madrugada de terça-feira saímos do Morumbi mais jovens do que entramos. De alma lavada, lembrei-me do meu amigo da padaria. Bom se ele tivesse ido...

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Dinossauros 2011


Não, não fui ao Rock in Rio 1. Tinha 16 anos, era 1985. Vontade não faltou. Mas naquela época o Rio de Janeiro era longe, a passagem era inviável para um estudante sem pa(i)trocínio. Vi pela Globo, com os comentários do Nelson Motta. Dia e noite eu ouvia meus vinis de Iron Maiden, Queen, Yes e tantos outros que se apresentariam na Cidade Maravilhosa. Mas não fui e ponto final.

Eis que, após 25 anos, surge a chance de reescrever essa história: Rock in Rio 20 ou 30, não importa. Rock in Rio. A trilha sonora da minha vida continua praticamente a mesma. Ouço no Ipod Run to the Hills, Bohemian Rhapsody e Roundabout.

Só que eles não vêm. Por enquanto, pelo que li, os “dinos” confirmados são Metallica e Red Hot Chili Peppers. Legal, curto. Acho bom pra caramba. Mas não são, assim, os meus eternos ídolos de adolescência. Tá certo, Freddie Mercury morreu, o Yes se desfez e o Iron bate ponto anualmente em várias cidades brasileiras. Mas tô começando a desconfiar que o Rock in Rio ficou moderninho demais pro meu gosto.

Aliás, já começaram as vendas para o festival, que está marcado para setembro/outubro de 2011. Cá pra nós: naquela época roqueiro nenhum programava o que ia fazer dali a um ano. No máximo, um esquema para o próximo fim de semana.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

O Haiti é logo ali


Eliseu é um médico brasileiro, professor universitário com doutorado em neurocirurgia. Recentemente esteve em Santo Domingo, prestando consultoria às autoridades de saúde locais. Ao final de um dia de trabalho, perguntou a um médico dominicano onde poderia comer o melhor fruto do mar da cidade. O indicado foi um restaurante metido a chique no malecón, quase em frente ao Hilton, onde o Dr. Eliseu estava hospedado.

Por volta das 21h chegou ao restaurante, e como ninguém viesse recebê-lo à porta, escolheu ele mesmo uma mesa com vista para o mar. O movimento estava fraco, mas os garçons mal o olhavam. E nenhum se dignava a atendê-lo. Alguns minutos se passaram e, incomodado, tentou chamar o maitre. Permaneceu solenemente ignorado. Levantou-se e foi comer uma pizza em outro lugar.

No dia seguinte, comentou com seu colega médico o ocorrido. O dominicano se mostrou surpreso, e convidou Eliseu a retornar naquela mesma noite ao restaurante, desta vez em sua companhia. Ao chegarem à casa, o colega de Eliseu foi logo perguntar ao gerente por que eles não haviam atendido o brasileiro. A resposta foi tão singela quanto reveladora: “Desculpe, Doutor, pensamos que era um haitiano. Seu amigo é negro como eles”.

Essa historinha sem graça vivida por Eliseu é emblemática de um drama social que vem se agravando na República Dominicana. Com a inviabilização do Haiti como país, mais e mais haitianos têm procurado refúgio na nação vizinha. Aqueles que conseguem ultrapassar as fronteiras fortemente vigiadas, e vagar durante semanas pela floresta, passam a viver em guetos na periferia de Santo Domingo. Sem trabalho, sem cidadania, sem direitos mínimos.

Fogem dos terremotos, furacões, doenças e outras catástrofes que assolam seu país para enfrentar o preconceito e a marginalização na república vizinha. O Haiti é logo ali, mas circulam pelas ruas como se tivessem vindo de outro planeta. Ou melhor, do inferno.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Nas barbas do Tomas


Pintou uma viagem de última hora, a trabalho, para a América Central. República Dominicana. Uma rápida consulta no Google me lembrou que o país divide com o Haiti a ilha Hispaniola, porta de entrada de Cristovão Colombo no Novo Mundo. Ótimo. Em viagens assim sempre sobra um tempinho pra uma praia. Protetor solar na mala, a primeira parada caribenha foi no Panamá.

Quatro horas de aeroporto. Um perfume e um toblerone no free-shop, empanada com cerveja na lanchonete. Um aglomerado em frente a uma loja de eletrônicos me chamou a atenção. Na imensa TV de altíssima definição vi pela primeira vez a cara do Tomas. Aquela tempestade tropical que se transformara em furacão. Estava parado em frente à ilha Hispaniola. “Mañana por la mañana llega a la Isla”, dizia a repórter ao âncora.

Cheguei antes do Tomas, às 3h da manhã. O cara que ia me pegar no aeroporto não estava. Gastei US$ 40 no táxi. No hotel, perguntei sobre o furacão. “Tranquilo, señor, hemos pasado cosas peores”.

Acordei por volta das 9h com o zunido do vento. As vidraças se debatiam com força. Corri até a janela pra ver a tempestade. Abri um pouco para sentir o clima. Tomei um banho e desci para o café. O hall do hotel apinhado de gente. Muitos encharcados. Na TV, a já familiar imagem do Tomas, só que agora com o olho bem em cima do Haiti. E as barbas sobre Cuba e República Dominicana. Hóspedes entre eufóricos e assustados; funcionários sorrindo: “Tranquilo...”. Lá fora, só vento e água, muito dos dois.

Voltei para o quarto. Papéis e alguns objetos revirados. Carpete e cortina molhados. O cesto de lixo voara uns três metros para junto da porta. Tinha esquecido a porra da varanda aberta. A tempestade continuava. Pelo jeito não ia dar praia nem naquele nem nos outros dias.