sexta-feira, 27 de maio de 2011

Açougue cultural

Em 1994 Luiz Amorim juntou as economias e se tornou dono do açougue no qual trabalhava desde os 12 anos. Apaixonado por literatura, instalou no fundo da loja uma estante com alguns livros que colocou à disposição para empréstimos. A ideia foi bem recebida, e com as doações dos clientes as prateleiras se multiplicaram, chegando a abrigar um acervo de dez mil títulos.

A veia empreendedora de Amorim, porém, queria mais. Quatro anos depois de comprar o açougue ele promoveu uma noite cultural dentro da casa. Convidou 30 pessoas para, entre alcatras, maminhas e filés mignons, curtirem momentos de música e poesia.

Mais um sucesso. Ontem, 13 anos após aquele encontro idílico, a comercial da 312 Norte estava lotada para a 29ª Noite Cultural T-Bone. No palco, agora montado na calçada, o "Avohai" Zé Ramalho cantou para um público de pelo menos 10 mil pessoas.

O açougue cultural se incorporou ao patrimônio afetivo de Brasília. Seus sarais já receberam, entre outros, Jorge Mautner, Alceu Valença, João Donato, Tom Zé, Erasmo Carlos e até a Orquestra de Viena. Isso sem falar dos incontáveis artistas locais.

Não sei em que medida essa mistura inusitada ajuda Luiz Amorim a vender mais carne. Mas uma coisa é certa: nascido da mente inquieta de um jovem humilde, que aprendeu a ler aos 16 anos, o local tem ajudado a desconstruir a imagem de uma capital sem gente nas ruas, sem esquinas e sem vida.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

Jiló

Voltava de uma viagem longa e o avião parou pra uma escala em Belo Horizonte. Reclinei a poltrona e tentei cochilar enquanto esperava o embarque dos novos passageiros. Senti alguém cutucar o meu ombro: “Moço, eu sou naquela cadeira ali”. Era um sujeito rechonchudo e simpático, camisa xadrez e bigodinho preto. Levantei-me e ele se acomodou na janela.

Retornei ao meu exercício meditativo. Mas por pouco tempo. “Ô Zé, aqui dentro faz calor, hein!?”. Era o cara do lado falando com o amigo que ia na sua frente. Quem respondeu, também com sotaque carregado, foi o terceiro da turma: “Jiló, gira esse negocinho redondo aí de cima que refresca”. Jiló obedeceu. “Olha aí, Zé, o Tuninho tá chique, sabe até onde tem arzim no avião”. Alguns passageiros próximos acharam graça. Eu não. Queria dormir e cogitei mudar de lugar. Mas estavam todos lotados e me resignei.

Fecho os olhos novamente. Após a decolagem a comissária anuncia pelo rádio as informações do trajeto: “Nosso tempo de voo será de 50 minutos, com velocidade média de 800 km/h”. Meu colega de fila se assusta. “Nosssinhora, Zé, oitocentos paus! Ô loco!!”.

Vem o serviço de bordo. Enquanto degusta seu amendoim com Pepsi, Jiló aprecia o visual: “Ô Tuninho, olha a altura disso, rapaz! É alto pra carái mesmo!!”. Os risos em volta lhe dão corda: “Zé, vai acostumando com a vista daqui de cima, é aqui que cê vai morar quando morrer”. Até eu, apesar do sono, começava a me divertir com aquilo.

O voo segue, e entre uma tirada e outra descubro que de fato é a primeira viagem aérea de Jiló. Ele e seus amigos saíram do interior mineiro para pescar no Pará. De Brasília vão a Belém e de lá pra uma fazenda num monomotor.

Já próximos à chegada, sobrevoando o Paranoá, Jiló se espanta: “Olha o tamanho dessa lagoa, Tuninho! A gente devia era pescar por aqui mesmo!”. A essa altura ele era celebridade no avião. Eu, claro, não conseguira pregar o olho e folheava a revista de bordo.

Ajudo Jiló a colocar o cinto de segurança, e na aterrissagem é ele quem “tange” o avião com vozeirão de boiadeiro: “Ê, êê, êêê bichão.....bão demais!!!”.

Enquanto as portas são abertas, aquela correria pra pegar as bagagens de mão, ele analisa a aventura: “Ô Zé, essa foi mole. Quero ver é quando a gente tiver no aviãozinho no meio da mata; as onças tudo olhando pra cima e lambendo os beiços”.

Começa o desembarque e a fila anda. Despeço-me com um protocolar até logo, mas antes de ganhar o corredor ainda ouço Jiló sentenciar: “Tuninho, já reparou que só nós conversamos nesse avião? Ô povo educado, sô!”.

sábado, 14 de maio de 2011

Get Up Stand Up

Hailé Selassié governou a Etiópia por mais da metade do século 20. Foi o único imperador africano a manter seu país livre durante a colonização europeia no continente negro. O movimento Rastafári, nascido na Jamaica, vê nele a encarnação de Deus. Numa interpretação própria da Bíblia, o Leão Conquistador da Tribo de Judah.

Os rastas têm costumes peculiares, como alimentação natural, dreadlocks na cabeça e o uso sagrado da marijuana. E se Selassié é a divindade, Bob Marley é o profeta. Foi ele quem fez o grito desses cabeludos ser ouvido em todo o planeta. E colocou o reggae na parada pop mundial.

Marley nasceu em 1945. Aos 17, junto com o amigo Peter Tosh, fundou o The Wailers e deu os primeiros passos na carreira artística. Na década seguinte, tornou-se ídolo sem fronteiras. Suas canções missionárias, sobre amor, paz, liberdade e igualdade entre os povos, ganharam o mundo e o transformaram em mito. Is This Love, Africa Unite, Stir It up, Positive Vibration, Get Up Stand Up, só para citar algumas, até hoje embalam sonhos e protestos das novas gerações.

Nesta semana os fãs/seguidores celebraram os 30 anos da morte de Bob. Ele partiu aos 36, vítima de câncer. Mas sua música continua viva e atual. Neste vídeo, Get Up Stand Up, um de seus maiores sucessos, em show na Alemanha.


sexta-feira, 6 de maio de 2011

No fundo do mar





Nos últimos dias o fundo do mar foi notícia recorrente na mídia. Não por suas belezas, tesouros ou exuberância. Mas o mar como sepultura.

Ao comemorar em rede mundial a morte de Bin Laden, a Casa Branca disse que o terrorista foi executado e lançado às águas por fuzileiros yankees. Na versão oficial dos EUA isso foi feito para evitar que um eventual túmulo do guerrilheiro se tornasse ponto de veneração para os radicais.

Em outro caso, o governo francês, antes de anunciar a localização das caixas-pretas do Air France 447 no meio do Atlântico, disse que o robô-mergulhador encarregado das buscas encontrara destroços do avião contendo corpos de passageiros.

Muitos familiares de vítimas celebraram. Finalmente poderiam enterrar seus irmãos, pais, maridos, esposas, amigos. Outros, porém, disseram-se contrários ao içamento. Para eles, seus entes já repousam em jazigo nobre. A viúva do maestro Sílvio Barbato afirmou, em entrevista, que o marido sempre desejou, “ao invés de morrer, simplesmente sumir”. De certa forma, ele conseguiu.